domingo, 21 de fevereiro de 2010

Insight

Sentimental ou sentimentalistaa dicotomia de duas escolas de cinema

Um ensaio sobre a honestidade de uma história; sobre a opção de um cineasta de preservar a integridade do registro ou não, mediante suas expectativas comerciais

Qual a diferença entre sentimental e sentimentalista? Atendo-se a definição semântica da palavra, extraída do dicionário, sentimental é quando se marca por sentimento, sensibilidade, ideário emocional; o que resulta do sentimento e não do pensamento ou da razão. Enquanto que sentimentalismo é a tendência a mostra-se sentimental; exagero de reações ou comportamentos sentimentais.
A partir dessas definições, é possível identificar no cinema em geral, no americano em particular – ainda mais em tempos de Oscar- filmes que se ajustam a uma e outra definição. Antes de eleger os filmes que darão escopo a essa análise e que a caracterizarão, é preciso reconhecer que faz parte de qualquer narrativa, principalmente a fílmica, iludir, deslumbrar, manipular. Mas é igualmente necessário lembrar, que existem limites e padrões desejáveis a serem preservados; e que eles serão decisivos para lograr aos filmes a acunha de sentimentais ou sentimentalistas. Uma percepção necessária na hora de se apreciar uma obra cinematográfica.

Clint Eastwood e Hillary Swank em cena de Menina de ouro: Os personagens, e seus dramas, falam por si...


Para materializar essa análise, elegem-se três dramas recentes que venceram o Oscar e um forte candidato da safra atual. Menina de ouro (2004), Crash (2005), Quem quer ser um milionário? (2008) e Preciosa (2009). Em comum, todos esses filmes têm sua origem independente e também a opção por contar dramas pessoais representativos de minorias. O preconceito e as mazelas sociais são elementos fortes e proeminentes nos quatro filmes, no entanto, a forma como esses elementos são trabalhados difere em todos os projetos. A narrativa e os discursos defendidos também são diferentes.

Cena de Quem quer ser um milionário?: Tal qual Preciosa, fala-se de esperança, mas com a falsa promessa de redenção; todo o sofrimento será compensado.


Enquanto Menina de ouro é dosado, comedido e não força a empatia do espectador com seus personagens, o drama de Danny Boyle, Quem quer ser um milionário?, procura a empatia do público com seu protagonista a todo tempo, lançando mão de subterfúgios narrativos a todo momento para cativar sua platéia, em uma “espetacularização da miséria”. Crash por sua vez cede ao moralismo. Todos os núcleos apresentados no filme têm uma função social e permitem um comentário de seu autor. A improbabilidade de certos desfechos não incomoda em virtude da força das histórias. Todas calculadas para produzir o efeito que produzem. Em Preciosa não há esse maniqueísmo. Sabe-se de antemão que a tragédia da protagonista é muito particular, embora também seja comum, e que ela não encontrará redenção no cinema, nem a platéia. Testemunha-se a força interior gestada na personagem que advém do mundo a sua volta. A honestidade de Preciosa se contrapõe vitoriosamente a veia manipulativa de Crash, embora o filme de Paul Haggis seja dramaticamente mais eficiente.

Em Crash, Paul Haggis exorta: Aqui se faz, aqui se paga. Uma parábola moralista que não deixa de se configurar em um poderoso drama

A partir desses fatos inescapáveis pode-se medir o interesse dos diretores para com sua obra e seus efeitos. Enquanto Eastwood e Daniels queriam contar boas histórias, reais, dolorosas e sem soluções fáceis, Danny Boyle e Paul Haggis (que como curiosidade é roteirista de Menina de ouro) queriam cativar, e exortar, sua platéia irrevogavelmente. Para isso, lançaram mão de artifícios narrativos mesquinhos para potencializar determinadas percepções. Cederam ao sentimentalismo, portanto. Esse fato não torna seus filmes ruins, mas os deixa um degrau abaixo dos outros dois em matéria de cinema. Eastwood e Daniels conseguiram permear seus filmes de sentimento por méritos próprios, sem pesar a mão. Sem desonestidade no relato. Rever os filmes em questão pode ser muito útil para a correta e completa assimilação desse artigo e para que a diferença entre ser sentimental e sentimentalista fique bem clara para cinéfilos e frequentadores de cinema habituais.

Gabourey Sidibe é a protagonista de Preciosa: com seis indicações ao Oscar, o filme fala de esperança sem maniqueísmos

6 comentários:

  1. Excelente análise, Reinaldo! E eu sou mais obras sentimentais, do que as sentimentalistas!

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  2. Oi Reinaldo,

    Adorei sua idéia, achei de uma originalidade fora do comum, parabéns, um dos seus posts mais criativos.

    Na verdade, eu não entendo bem o porquê de bons diretores lançarem tanto estratégias sentimentalistas em dramas que são sentimentais em suas essências. Ainda que eu saiba, no fundo, que é manipulação bem focada e eles o fazem bem, não acho isso tão nobre, soa tão artificial que é como desejar adestrar o espectador a ter um reação sentimentalista naquele momento. É adestramento é um comando de obediência.

    Será necessário registrá-los de uma forma tão manipulativa? Não gosto de ser manipulada, definitivamente. Posso até me sensibilizar, mas sei que é porque me obrigaram (rs).

    bjs!

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  3. Realmente um ótimo e original texto, parabéns. Eu tenho certas diferenças e problemas com filmes sentimentalistas demais. Preciosa, por exemplo, eu o acho SUPER manipulador maquiado, diz que não é, mas no fundo é, entende? Bem, gosto mais de filmes sentimentais verdadeiros.

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  4. Ka:Obrigado Ka. Valeu mesmo. Tb sou mais obras sentimentais. São mais verdadeiras. Bjs

    Madame:Obrigado madame. Fico feliz por seu reconhecimento.Não sei se vc se lembra, mas tive a idéia de fazer este texto para a seção insight após comentarmos sobre os aspectos manipulativos em Quem quer ser um milionário? Embora não tenha me aprofundado no filme em particular, espero que tenha ficado claro os pontos que iluminei em relação ao filme. Sou como vc.Posso até me sensibilizar, mas sei que me obrigaram a isso. Caso de Crash (um filme que adorei, mas reconheço seus subterfúgios) e Quem quer ser um milionário?.
    Bjs e mais uma vez, obrigado!

    Luis Galvão: Valeu meu brother. E eu entendo sim. Todos esses filmes buscam, em algum nível, catarse. E obter catarse no cinema é sempre algo um tanto manipulador né? Estou contigo, gosto de filmes verdadeiros. e se vc parar para analisar, vai ver que nesse departamento, Menina de ouro e Preciosa o são. Pelo menos mais do que os outros dois filmes que ilustram esse artigo. ABS

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  5. Oi Reinaldo, obrigada. Lembro sim e achei maravilhoso você elucidar tal questão aqui. Não é um assunto fácil para elucidação, mas entendi a linha tênue que separa o sentimental do sentimentalista. É necessário certo treino e muita malícia também. bjs!

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  6. Obrigado por mais esse feedback madame. A seu dispor, sempre. Bjs

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