A noite americana
Não havia maneira melhor de estrear uma coluna que pretende
abraçar o cinema europeu em toda a sua força e representatividade do que
destacar o excepcional François Truffaut em sua primeira edição. Além de ser o
principal vértice da Nouvelle Vague (movimento francês que elevou o cinema de
autor), Truffaut é um cineasta que transpira cinefilia. Talvez por isso A noite
americana (La nuit américane, FRA 1973) tenha lhe valido sua única indicação ao
Oscar de melhor diretor. O filme, no geral, teve quatro indicações e venceu,
com toda a justiça, o Oscar de melhor produção estrangeira.
O filme é uma valiosa declaração de amor ao cinema, mas é,
também, uma rigorosa desglamourização do mesmo.
Truffaut faz Ferrand, um diretor de cinema às voltas com
diversos problemas para produzir “Je vous presente Pamela”, que conta a
história de uma jovem inglesa que troca o marido pelo sogro. A produção
enfrenta todo tipo de problema. Desde o encolhimento do cronograma, a estrelas
problemáticas, passando por extravio de copiões e outras situações inusitadas.
Truffaut realiza um filme com humor inteligente e verve
dramática na mesma medida. Há ótimos insights sobre algumas maledicências dos
bastidores de um filme como a percepção de ser uma Sodoma ou mesmo sobre os
pesadelos do diretor com prazos e comparações.
Uma estonteante Jacqueline Bisset vive Julie Baker, a
estrela inglesa com uma boa cota de escândalos na bagagem. O último foi o fato
de ter se casado com seu médico, que por sua vez largou a família por ela.
Ainda no tumultuado set de filmagens, o inseguro galã (Jean-Pierre Léaud), o
veterano egocêntrico (Jean-Pierre Aumont), a diva em decadência (Valentina
Cortese), além da figura opressivamente cômica do produtor Betrand (Jean
Champion).
A tônica do filme é o desenrolar do cronograma de filmagens
e a observação da condução, nem sempre delicada, mas frequentemente caótica de
um set de filmagens pelo diretor. A noite americana, no entanto, é também um
instrumento valioso para Truffaut declinar suas referências cinematográficas.
Estão lá, alinhados das maneiras mais criativas e diversas, Alfred Hitchcock,
Ingmar Bergman, Francis Ford Coppola, Howard Hawks, entre outros.
O cinema francês é o mais remissivo de arte autoral que se
tem disponível. Até produções mais comerciais daquele país são tidas como
manifesto artístico. Basta ver o recente Paris-Manhattan, que adicionou uma
pitada de Woody Allen a sua receita e voilà, se subscreveu fora da França como
um romance mais sofisticado do que fato é.
Truffaut, no centro de jaqueta e gravata, no set de A noite americana: o cinema francês deve muito ao realizador de, entre outros clássicos, Os incompreendidos
Essa percepção, desnecessário dizer, é reflexo direto da
Nouvelle Vague e de filmes como A noite americana, que objetivaram transgredir
as normas vigentes de produção de cinema comercial no país. Se parece absurdo
relacionar um clássico de máxima potência como A noite americana a um filme
inofensivo como Paris-Manhattan, é preciso atentar que não se fala da qualidade
dos filmes, mas da percepção do mercado e da crítica internacionais a respeito.