Você pode jamais ter ouvido falar de "Breaking bad" até duas
semanas atrás, quando uma pandemia na internet e na mídia em geral alvissou
tudo e todos com o fim da série que promoveu, quase que na total surdina, uma
revolução nos padrões da televisão e na forma de se desenvolver uma narrativa.
"Breaking bad", a bem da verdade, desde seu início chamou
atenção da crítica. Mas esteve à sombra da mais estilosa e verbal "Mad men" – a
outra brilhante cria do canal americano AMC.
Vince Gilligan, criador da série, costumava dizer que a
ideia por trás do programa era mostrar a transformação de Mr. Chips (um
professor de reputação ilibada e conhecido por ser bondoso) em Scarface (o
famoso traficante de drogas implacável) – ambos saídos do cinema americano dos
anos 30 e apenas duas breves referências da cinefilia exercida por Gilligan em
seu programa. A crítica americana, antes mesmo do desfecho da série – que teve
62 episódios ao longo de cinco eletrizantes temporadas – já havia carimbado o
sucesso do objetivo de Gilligan e referendado "Breaking bad" como a plataforma
para a transformação, ou jornada, mais extraordinária a ter ganhado a tv.
É preciso ir além. A jornada de Walter White (Bryan
Cranston) é o melhor desenvolvimento de personagem já feito. E ponto. Seja na
literatura, no cinema ou na tv. De dimensões shakespearianas, a trajetória do
professor de química pacato e banal que se transforma no mais temido e cruel
traficante de drogas da fronteira entre o México e os EUA, é repleta de epifanias,
metáforas e minuciosos insights sobre o absurdo da humanidade em toda a sua
insignificância e efervescência.
Nenhuma série contemporânea conseguiu amealhar tanto sucesso de crítica e público de maneira simultânea e regular. "Breaking bad" não só o fez durante suas cinco temporadas, como extrapolou os limites do culto como sugerem esses cinco cartazes alternativos feito por fãs
Gilligan disse recentemente que a Netflix salvou a série.
Essa afirmação tem a ver com aquela que abriu esse texto. "Breaking bad" iniciou sua
jornada na tv com uma audiência de pouco mais de 1 milhão de espectadores e
encerrou-a com um público superior a 10 milhões nos EUA e o recorde de 500 mil
downloads ilegais em 12 horas. Além de pautar toda uma cobertura cultural que foi do New York Times à revista Veja.
Não. Não é "Lost"! "Breaking bad" revoluciona a tv não por ser
um produto afeiçoado aos novos tempos de distribuição de conteúdo audiovisual e
fóruns on-line, ainda que se beneficie das novas tendências, mas sim por ser a
primeira a trabalhar o conceito de serialização em seu favor. De usar o tempo
narrativo inerente a uma série de tv para desenvolver um personagem (no caso
muitos) sempre com atenção ao ritmo da narrativa. Foi uma das primeiras a
imprimir qualidade de cinema à tv. A direção, a fotografia, a montagem e a
trilha sonora – para não chover no molhado em relação às atuações – ainda hoje
se destacam na televisão americana pelo nível ímpar.
Ajudou, obviamente, o fato de que Gilligan estava plenamente
consciente de onde queria chegar com seu personagem principal e com o programa
como um todo. Essa consciência de tempo, espaço, ritmo e a humildade de
ajustá-los às circunstâncias fez de "Breaking bad" um marco ainda mais insidioso
em seu desfecho. O autor disse que o final foi concebido com atenção aos fãs,
mas não foi um final feito para atender essencialmente aos fãs. Está aí uma
valiosa, e rigorosa, diferença. O autor disse também que contou com a ajuda
vital de Bryan Cranston na confecção de alguns pontos chaves da trama.
Cranston, é bom que se deixe claro, é parte fundamental do sucesso de "Breaking
bad". Ator espetacular, ele fez de Walter White mais do que um mito da cultura
pop, o elevou ao patamar de grandes personagens da ficção. É até difícil falar
de sua interpretação, tão simbiótica, tão aprofundada nos dilemas e
fragilidades do ser humano, sem esmerar em linhas sociológicas diversas da
análise crítica a que se propõe esse artigo.
O elenco comemora a vitória como melhor série dramática no Emmy 2013: a breaking bad fever foi irresistível para a Academia de TV dos EUA
"Breaking bad", grosso modo, está para a televisão americana
como Cidadão Kane está para o cinema, de modo geral, no enquadramento que faz
do anti-herói e na sua expertise narrativa ao desvelá-lo.
"Breaking bad" ainda apresenta o mérito de colocar seu
espectador em uma situação desconfortável. Não cabe ao programa punir Walter
White. O juízo que se impõe é exterior à série. O que se coloca é porque
gostamos de Walter White? Por que torcemos por ele? Quando deixamos de torcer
por ele? É uma questão de consciência e autoconhecimento que se impõe. Gilligan
afasta o ranço moral, tão patrulhado na produção cultural contemporânea, de sua
alçada e a transfere para o público.
No início, White começar a produzir e traficar metanfetamina
para assegurar um futuro financeiro sólido para sua família, depois que
descobre ser vítima de um câncer terminal no pulmão – mesmo sem jamais ter
fumado. Lá pelo fim da segunda temporada, o câncer desaparece e White é
obrigado a assumir suas escolhas – ciclo apenas completado no último episódio
da série. Gilligan sabiamente retirou o elemento justificador das atitudes do
personagem perante a audiência para que pudesse exercitar mais livremente suas
ambições autorais. "Breaking bad" é sobre escolhas. Sobre como persegui-las.
Sobre como conviver com elas e, obviamente, sobre as consequências que delas
advêm.
Nunca houve na tv americana um programa tão bom, tão
consistente, tão brilhante em suas articulações narrativas e tão fiel às
propostas que o antecederam. Essa unicidade, aliada à tridimensionalidade de
personagens tão bem desenvolvidos, coloca "Breaking bad" na esfera dos imortais.
Em todas as mídias e para todos os públicos.
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