Não há como negar. O personagem vivido pelo excelente ator Wagner Moura nos dois filmes Tropa de elite é o grande personagem dos últimos anos surgido no cinema brasileiro. Quiçá não seja o maior personagem a surgir de maneira emancipada no cinema sem outro ponto de origem como a literatura, por exemplo.
Nascimento é um personagem que não comporta ambiguidade. É, por assim dizer, um personagem unidimensional. Por que então foi alçado ao patamar de ícone? O ator Wagner Moura e o diretor José Padilha já confessaram repetidas vezes terem sido surpreendidos pelo fato do personagem ter sido elevado a esse status pop. É justamente através de Nascimento que é possível mensurar Tropa de elite e seu impacto social. Mas o personagem não nasceu para ser bússola. Se impôs. A narração em off não existia nas primeiras versões de Tropa de elite. Esse recurso foi fruto de uma revisão na sala de montagem em que os realizadores perceberam que Moura roubava o filme e então aproximaram Nascimento do público. Ele seria nosso guia naquele mundo tão sórdido que se revelava para nós. E Nascimento não é menos sórdido. Torturador, intolerante, irascível, violento, explosivo, mas também é honesto, justo, fraterno, puro. Não chega a ser uma ambiguidade. As características de Nascimento são cristalinas. São idealizadas. Ele representa uma visão de mundo. A acolhida que a sociedade civil deu ao personagem espantou José Padilha. A crítica a uma polícia truculenta estava sendo aplaudida nas salas de cinema, mas não a crítica em si e sim o que era criticado. Essa atitude, e a reação a ela, ajudam a entender o arco dramático ao qual o personagem é submetido no segundo filme. A visão de mundo de Nascimento é posta a prova. O novo filme avança pouco mais de uma década e nesse percurso do tempo, Nascimento vai sendo temperado pela politicagem que antes ignorava dentro do que denomina o “sistema”. A transformação de Nascimento neste filme (reparem na curva dramática proposta pelo roteiro em que Nascimento acaba por ser aliado do deputado Fraga que no início do filme o próprio personagem descreve como uma espécie de nêmesis) não deixa de ser um vaticínio da realização a essa acolhida calorosa que o personagem e, mais importante ainda, sua visão de mundo receberam do público. Talvez doutrinar seja uma palavra forte, mas essa foi a principal orientação dos realizadores de Tropa de elite 2 na confecção do filme (mesmo que não seja admitida). Era necessário enveredar tanto o personagem quanto o público pelo caminho da reflexão. Não que a apoteose catártica esteja descartada (o “velho” Nascimento ressurge e espanca um deputado corrupto para delírio da platéia), mas ela está mais contida do que no primeiro filme.
Em debate realizado na última quarta-feira (13) em São Paulo, o ator Wagner Moura admitiu que "Nascimento é um personagem frágil"
Nascimento lembra, e muito, outro icônico personagem de nossos tempos. O Jack Bauer do finado seriado 24 horas foi considerado o personagem almágama da era Bush. Por quê? Por reunir em torno de sua persona todas as características identificáveis no governo Bush (as boas e ruins). Bauer, assim, como Nascimento, é incorruptível, truculento, puro e torturador. Essa figura é dramaturgicamente eficiente. Assim como Nascimento, Jack Bauer virou alvo de adoração por parte do público. Assim como Nascimento acabou renegado e subvalorizado dentro do contexto de sua respectiva trama.
É sintomático que personagens, cuja razão de existir seja criticar algum dispositivo em voga na sociedade – seja ela civil, política, ou da interação entre ambas – sucumba ao moralismo. Afinal, é necessário estornar os valores morais e o regimento ético suspensos no momento em que tais personagens, e suas atitudes, viram objeto de culto. No final das contas, quem está mais errado? O puro e truculento Nascimento e seu congênere Jack Bauer ou nossa sociedade cada vez mais cínica e anestesiada?
Tanto o Capitão Nascimento, como Jack Bauer são consequências do mundo violento em que vivemos.
ResponderExcluirA violência entra diariamente na casa das pessoas pela tv, se transformando em algo comum, infelizmente.
Abraço
O Nascimento é um tema interessante para uma monografia científica.
ResponderExcluirNão tive tempo de ver o filme ainda.
Abs.
Rodrigo
Ambos jogam com suas cartas e ousam para proteger algo que não deixa de ser o sistema em que habitam !!!
ResponderExcluirBom texto, Reinaldo e bem propício. O maniqueísmo dos dois personagens, defendendo o que consideram bom e caindo em cima do que consideram mau é fruto da forma como foram forjados. Por isso achei interessante as vozes destoantes do segundo filme de Padilha.
ResponderExcluirbjs
Hugo: É verdade Hugo. Abs
ResponderExcluirRodrigo Mendes: É mesmo. Aposto que já pipocam algumas por aí... abs.
Marcelo: Filosofou bem.rsrs. abs
Amanda:Bem, eu não deixo de ser uma voz destoante desse segundo filme. Não o acho tão urgente e verdadeiro quanto o primeiro. Bjs
Reinaldo,
ResponderExcluirEsse é um dos seus melhores textos. De verdade. Adorei a análise do Nascimento (aquilo de ele ser possivelmente nosso primeiro grande personagem de cinema), sobre a mudança que o personagem sofre nos dois filmes e o que a justificaria, e o contraponto com o Jack Bauer - homens que acreditam e lutam por uma causa maior nesse mundo tão maluco, não que eu aprove os métodos. A humanidade perdeu muito de si mesma, nossos heróis não podem ser os seres mais "sãos".
Bjs
Aline: Obrigado pela ponderação que só fez enriquecer o meu texto. Adorei o elogio com o qual vc a abriu, a propósito.
ResponderExcluirBjs