A arte da sobrevivência é uma história sem fim
Trapaça (American Hustle, EUA 2013) é um filme sobre
vigaristas. Sobre os anos 70. Sobre ambição e sobre àquela necessidade que bate
nossa porta de quando em quando de reinventarmo-nos por completo. É, também, um
filme de David O. Russell e esse último aspecto vêm ganhando cada vez mais
relevância no cinema atual.
Indicado a dez Oscars (filme, direção, ator, atriz, ator
coadjuvante, atriz coadjuvante, roteiro original, figurino, direção de arte e
montagem), Trapaça é um filme que se escora, com consciência absurda, em seus
personagens. E eles são todos fascinantes. Desde aquele que parece confinado ao
status de apêndice narrativo (como o chefe do FBI vivido por Louis C.K) até o
protagonista Irving Rosenfeld (Christian Bale).
Os anos 70 de figurinos exagerados e boa música surgem na
paleta de Russell como uma época de desencanto em que o sonho americano em si
precisava ser reinventado. Entornar neste caldo corrupção política, máfia e a
mais fina malandragem apenas demonstra a expertise de Russell como narrador.
Irving é do tipo que se garante pela lábia. Ele se apaixona
por Sidney Prosser (Amy Adams) tão logo nela repara e descobre que gostam
exatamente da mesma música. Esse elemento que une os personagens é um dos
muitos em que Trapaça
excederá as expectativas do público e se comunicará com ele em outro nível. Outro
desses momentos é quando Jennifer Lawrence, na pele de Rosalyn – a esposa de
Irving que lhe nega o divórcio – canta "Live and let die" enquanto faxina.
Fossem as grandes cenas, Trapaça já valeria o ingresso, mas
o filme mostra também que Russell não só é um sofisticado diretor de atores,
como um lapidador de personagens raro no cinema atual.
Sidney e Irving se amam e se jogam no esquema de ludibriar os
outros até que são pilhados em flagrante pelo agente do FBI Richie DiMaso
(Bradley Cooper), que os convence a colaborar em uma investigação para que ele
prenda peixes graúdos. Acontece que DiMaso vai gostando dessa vida de
malandragem e começa a enxergar a beleza de
conseguir peixes ainda mais graúdos. A necessidade de reinventar-se,
advoga Russell por meio de seus personagens, é um fluxo constante e horizontal.
Enquanto a ganância de DiMaso se multiplica, Irving à medida
que prepara o bote para puxar o tapete de um punhado de políticos, entre eles o
populista prefeito vivido por Jeremy Renner – a quem se afeiçoa, começa a
sentir o peso de suas inconsequentes atitudes. Essa tomada de consciência do
personagem, nunca absoluta, afinal, Irving se ressente de adentrar as
hostes da máfia e flertar com a possibilidade real de morte, é a linha mestra
da dança de gêneros pela qual Russell conduz sua audiência.
Da comédia de erros à sátira, passando pelo thriller e pelo
drama mais rebuscado, Trapaça é um cinema tão redondo quanto o talento de seu
realizador pode ofertar.
Não há crítica social ou o desejo de radiografar algum tema
relevante do presente, Trapaça é entretenimento adulto na sua mais fina concepção.
É, também, um tributo ao cinema de Scorsese, em os que personagens precisam se
encontrar no imenso tamanho de suas ambições.
Os anos 70 surgem saudosos, românticos e mais coloridos do
que talvez tenham sido no filme de Russell que coloca os personagens no comando
do show. Jennifer Lawrence brilha como a bipolar e manipuladora Rosalyn. É uma
das grandes personagens femininas dos últimos tempos e Lawrence tem o talento
necessário para fazer jus a ela. Christian Bale tem a melhor atuação de sua
carreira na pele de Irving. O ator precisa ir do dramático ao cômico e o faz
com uma organicidade espantosa. Sem perder o cinismo e o charme de vista. Em um
olhar ele exprime tudo o que o personagem precisa exprimir. Bradley Cooper é
outro ponto nevrálgico do elenco. Além da urgência de sua composição, Di Maso é
esperto, mas não raciocina como deveria, Cooper sabe revelar a fragilidade de
seu personagem no timing preciso. Mas o grande nome de Trapaça é mesmo Amy
Adams. Ela é o coração do filme. É através de sua Sidney, que na maior parte do
filme é Edith, que Trapaça viabiliza sua razão de ser: de que essas segunda,
terceira, quarta chances dependem rigorosamente de nós. Adams está sensual como
nunca, sutil como sempre, mais expansiva do que de hábito e arrebatadora como
Trapaça precisa que ela seja. Se há um porém no elenco, é Jeremy Renner, que
apesar de bem intencionado, não convence como italiano do povo.
É preciso dizer que Trapaça, sem seu elenco, não seria
metade do filme que é e é aí que a grandeza de Russell se revela. Ele sabe
disso e não faz a menor questão de esconder.
Eu já gostei muito da atuação de Renner. kkkk De resto concordo em gênero, número e grau. Vi muitas opiniões colocando Trapaça como um filme mediano, que já estava até na dúvida se só eu tinha me empolgado tanto com o filme. É um filme de grandes atores, e de uma trama deliciosa. Eu acho que muita gente queria ver um grande golpe, um grande roubo, mas na verdade eles estavam lutando por suas vidas. Essa é a grande sacada.
ResponderExcluirO que me incomodou um pouco no filme foi a edição. Muito frenética em certos momentos, impediu um envolvimento maior com algumas cenas.
ResponderExcluirBradley Cooper me incomodou um pouco também, acho que as vezes ele exagera, deixa a interpretação caricata. Essa também foi a minha impressão em "O Lado Bom da Vida". Cooper ainda não me convenceu, apesar das indicações ao Oscar. Bale, Amy e Jennifer estão perfeitos.
O filme conseguiu basicamente as mesmas indicações ao Oscar que "O Lado Bom da Vida" teve no ano passado. Levou vantagem por ser um filme de época e só por isso abocanhou mais 2 categorias (direção de arte e figurino).
Um dos textos mais positivos que li sobre "Trapaça". Ainda tenho que assistir a este novo filme do David O. Russell.
ResponderExcluirThiCarvalho: Grande ThiCarvalho. Sacou o filme direitinho! Que bom que estamos afinados na recepção a este belo trabalho de Russell.
ResponderExcluirabs
Anônimo: Eu gostei do trabalho de edição. De qualquer forma, está neste frenesi o grande tributo ao cinema de Scorsese. Esse nervosismo na edição é o que assemelha esse filme de "Os bons companheiros"por exemplo. Cooper beija a caricatura aqui sim, mas penso que é um movimento consciente. Ele está bem, mas é o fraco - se podemos dizer assim - dos quatro atores. Em O lado bom da vida, não. Lá, na minha avaliação, ele está irretocável.
Abs
Kamila: Espero que vc goste!
bjs
Que lega! Senti seu entusiasmo nessa crítica, o que me motivou mais a assistir ao filme.
ResponderExcluirPenso que todos nós temos uma necessidade de reinventa-mos e a malandragem é atrativa, deixar de ser certinho...rsrs
Beijo
Madame
Cristiane: É esse o espírito Cris. Um filmaço a seu modo e com grande carinho pelos personagens.
ResponderExcluirBjs