O discurso de Kiarostami
Ele saiu do Irã para filmar. Mas há quem diga que o Irã não
saiu dele. O cinema de Abbas Kiarostami sempre carregou em sua essência o gosto
pela contradição, mas de uns tempos para cá o cineasta iraniano – filmando fora
do Irã – parece propor uma estética mais esmerada na ambiguidade da curiosidade
– dele e da plateia – do que de qualquer outra convenção cinematográfica ou
narrativa.
O maior interesse de Kiarostami, no entanto, parece ser
traduzir, ou melhor, compreender o mundo e nossa relação com ele. Mas o
cineasta não é presunçoso ao ponto de julgar que detém as respostas para os
questionamentos que compartilha com seu público.
Nessa vertente se enquadram alguns de seus filmes mais
expressivos, como Close up (1990); um dos primeiros híbridos de documentário e
ficção a ganhar forma no cinema. No filme, acompanhamos a história de um jovem
cinéfilo que se faz passar por seu diretor favorito. Quando a farsa é
descoberta, ele é preso e julgado por fraude. Kiarostami obteve autorização
para filmar o julgamento que foi parar no filme. Outro exemplo da curiosidade
irrefreável do cineasta e de como ela move seu interesse por repercutir o
inusitado é Gosto de cereja (1997), filme pelo qual triunfou em Cannes vencendo
a Palma de Ouro. Na fita, um homem com seus 50 e poucos anos perambula por
Teerã em busca de alguém que possa enterrá-lo depois que ele se suicidar. O
filme é um testamento da imaginação de Kiarostami em ofertar em imagens algo
difícil de ser dimensionado visualmente. O ritmo do filme se insere como
ferramenta narrativa em um movimento que cineastas como Terrence Malick em A árvore da vida tentam reproduzir, mas mal arranham.
Cena de Gosto de cereja: uma busca particular e inusitada que Kiarostami universaliza com seu cinema
Em Dez (2002), por exemplo, Kiarostami reduz ao mínimo sua
atuação como realizador ao colocar duas câmeras em um carro e duas pessoas (no corte) conversando durante toda a metragem da fita. Dez foi proibido no Irã por
abordar questões como prostituição, o tratamento dispensado às mulheres no país
e algumas críticas à religião islâmica. Mesmo assim, a revista Time o elegeu um
dos 100 melhores filmes da história. Em Dez, como se todo o mais não bastasse,
Kiarostami, por meio de suas opções estéticas, relativiza o domínio do diretor
sobre um filme em uma discussão rica, renovável e multifacetada.
A nova fase
No entanto, nada se compara ao que Kiarostami vem produzindo
de uns anos para cá. Mais vago nas formulações esquemáticas do roteiro, mais
rigoroso nas elaborações estéticas de uma narrativa e menos interessado em
traços políticos, o iraniano resolveu dividir a autoria do filme com seu
público. Esse talvez seja o grande norte de produções como Cópia fiel (2010) e Um
alguém apaixonado (2012). Ambos os filmes compartilham o mesmo DNA em
relativizar verdades e simulações. Mas enquanto o primeiro ainda apresenta à
plateia os pilares sobre os quais ela irá duvidar, o segundo permite que até
mesmo esses pilares sejam apresentados pelo público. São filmes desatados de
uma formatação quadrada, pavimentada e que fluem livremente para somente
amadurecerem algum tempo depois de vistos pela primeira vez. É uma proposta
ousada e que irriga a sétima arte como catalisadora de manifestações
artisticamente pulsantes. Ainda que muitos creiam que isso já não seja mais
possível no cinema.
Cena de Cópia fiel: filme que discute a arte de uma maneira cativante, mas pouco incisiva
Não é possível dizer que o cinema de Kiarostami é melhor
hoje do que o era há 10, 20 anos. Mas é inegável que o cineasta atingiu um
nível de maturação e desprendimento artístico que creditá-lo a “um Irã dentro
dele” é simplório demais. Kiarostami talvez seja o cineasta vivo que melhor
represente o fluxo constante de contradições e evoluções que marcam a
humanidade. Seu cinema se impõe, não como bússola, mas como centro
gravitacional da sétima arte em seu traço mais apaixonante.
Conheço pouco da filmografia do Abbas Kiarostami. Para falar a verdade, só assisti a um filme dele: "Cópia/Fiel", que gostei bastante. Adorei ler seu texto, pois pude conhecer mais sobre o diretor. Beijos!
ResponderExcluirÓtimo ensaio, Reinaldo.
ResponderExcluirO cinema de Kiarostami é muito instigante e um dos melhores para compreender as inquietações do mundo contemporâneo. Desses, só estou devendo "Close Up", que confesso nunca ter ouvido falar, mas me pareceu bem bacana e lembrou um filme pequeno chamado "Totalmente Kubrick" com o John Malkovich.
Também não tive a chance de assistir a "Um Alguém Apaixonado". Esperando alguma cópia chegar por aqui, mas desde que foi anunciada a estreia no Brasil, já é um dos filmes que mais nutro expectativas. Ainda mais pela sua relação com "Cópia Fiel", o melhor do ano passado, na minha opinião.
Abs.
Kamila: Obrigado Ka. Pois é, Kiarostami é o que se chama por aí de gênio da sétima arte.
ResponderExcluirbjs
Elton Telles: Obrigadão meu brother! É verdade. Há essa familiaridad com Totalmente Kubrick, que tb é um bom filme, mas não se compara a Close up. Cópia fiel, para mim, é um bom filme. Mas não se impõe frente a sua ideia.
Abs