A doutrina de Lars Von Trier
Muito já foi dito sobre o dinamarquês Lars Von Trier. Recentemente, a carga foi retomada em virtude da virulenta ação de marketing perpetrada pelo cineasta no último Festival de Cannes. Na ocasião, Von Trier disse que entendia Hitler e que pensava ser judeu para então se descobrir nazista. Uma brincadeira insólita que varreu o mundo com uma indignação que ora se inclinava para o teor da brincadeira, ora para a falta de escrúpulos do cineasta em abster-se dos limites aceitáveis em nome da promoção pessoal.
Coerência, no entanto, é algo que não se pode cobrar do dinamarquês. Ele é um dos fundadores do dogma 95, movimento estético que objetiva romper com as diretrizes do cinema praticado em Hollywood. Von Trier rompeu com o próprio manifesto logo em seu primeiro filme pós-movimento, Ondas do destino (1996). Os idiotas (1998) e Dogville (2003) são as produções do dinamarquês que mais se aproximam do manifesto que ajudou a formular.
Mas fosse coerência o grande problema de Von Trier e as coisas estariam bem. Com forte apreço à publicidade, seus filmes sempre se esmeraram em construções visuais arrebatadoras, Von Trier ficou refém da própria imposição. Superar-se sempre. O próprio admitiu profunda depressão, da qual concebeu – como via terapêutica – o não menos polêmico Anticristo (2009). A crise autoral de Von Trier, como bem sabe o próprio, não é infundada. Seu cinema, como atestam críticos de prestigiadas publicações como The Guardian, Los Angeles Times, Hollywood Reporter, Le Monde e a bíblia do cinema Cahiers du cinema, está mergulhado em profunda regressão. O ponto inicial dessa crise talvez date justamente de 2003, com o lançamento de Dogville; um filme arrojado, instigante, mas que atendia às demandas erradas: mal dizer a América. Von Trier, à época, garantia que iria rodar uma trilogia sobre a América. Uma nação escravagista, competitiva, atroz e dominadora – nas palavras do cineasta. Manderlay (2005) era, em proposta e discurso, uma repetição de mal gosto do original. O fato de nunca ter pisado nos EUA parecia cada vez mais evidente no processo de desconstrução prepotente proposto pelo cineasta. A terceira parte da trilogia, Washington, prometida para 2007, não chegou a ver a luz do dia. Foi aí, segundo o próprio Von Trier, que a depressão o visitou. A crise criativa resultou em AntiCristo, que talvez por reunir seus demônios e imperfeições, seja seu melhor filme. Mas com AntiCristo veio mais um ataque de prepotência. Von Trier se declarou o melhor cineasta do mundo e recusou-se a explicar seu filme – uma experiência sensorial de fazer inveja a Godard.
O diretor entremeado pelos protagonistas de Anticristo, no festival de Cannes de 2009: de queridinho à persona non grata
AntiCristo, e mais do que o filme a polêmica que provoca, valeram um sobre-fôlego ao cineasta dinamarquês. Não dá para cravar que foi esse fator que o levou a exagerar, mais uma vez, nas declarações polêmicas; mas é possível assumir isso como provável. Von Trier sabe se promover. A estética de seu cinema encontra em sua personalidade arrogante e – para alguns – imbecilizada, um componente de transgressão que é facilmente tomado como autoral. Não que não seja, mas o contexto da produção comercial favorece esse deslocamento. Von Trier percebe isso muito facilmente. Hoje ele abastece seu cinema da figura transgressora que representa como cineasta. Fosse um autor na mais correta acepção da palavra e o movimento seria contrário. Essa doutrina um tanto quanto peculiar (que não deixa de ser genial sob o ponto de vista publicitário) lhe valeu admiradores e detratores igualmente apaixonados em seus posicionamentos.
Melacholia, seja bom ou ruim, será um filme menor do que seu diretor. Muito bom para Von Trier, muito ruim para seu filme.
Bom texto, Reinaldo! O Von Trier é aquele tipo de cineasta que leva tudo ao último limite. Para ele, aliás, acho que nem limites existem. Ele sempre tenta ultrapassar o bom senso, o que é considerado natural e nos deixarmos fora da nossa zona de conforto. Isso eu valorizo nele, mas acho que quem trabalha com ele não gosta disso, não. Nicole Kidman que o diga! rsrsrsrs
ResponderExcluirÓtimo texto, Reinaldo. Devo confessar que faço vista grossa às polêmicas de Lars Von Trier porque gosto muito dos filmes dele. E o pouco que já vi de Melacholia me deixou ansiosa por setembro. Agora, você definiu bem a procura dele que parece querer ser mais que suas obras.
ResponderExcluirbjs
Kamila: Pois é, independentemente desse viés déspota dele em um set de filmagens, já faz um tempo que seu cinema se encontra um tanto estagnado. A exceção talvez seja AntiCristo que é produto de uma crise deflagrada pela consciência disso tudo aí de cima...
ResponderExcluirBjs
Amanda:Tb quero ver Melancholia. Sandices sempre dão audiência...rsrs
Bjs
Sempre fui fã de Lars Von Trier, desde Breaking Waves.
ResponderExcluirAcho que a polêmica que Von Trier causa em seus filmes e aparições é muito bem vinda no cinema atual. Parece que todos andam muito comportados, com medo de ousar e esse nunca vai ser um problema para Lars Von Trier. É por isso que ele é um dos meus cineastas favoritos.
Película Criativa: Diferentemente de vc, acho que o Von Trier se perdeu. Exceção feita a Anti Cristo, que pode ser tido como um espasmo criativo, acho que sua filmografia vem encolhendo de tamanho. E sua disposição de ser maior do que seus filmes facilita esse processo.
ResponderExcluirUma pena, pois sem dúvida, é um cineasta inventivo e imaginativo.
Bjs