A consagração de Sacro GRA como o grande vencedor da 70ª
edição do festival de cinema de Veneza revela algumas camadas sobre o festival,
o momento político e cultural da Itália e, ainda, sobre o cinema como um todo.
A escolha do documentário italiano não foi comemorada ou saudada como um acerto
supremo do festival, mas também não foi contestada como frequentemente acontece
na esteira do abissal desacordo que há entre crítica e júri nos festivais de
cinema. Houve um questionamento pontual por parte da crítica internacional pelo
fato de Philomena, favorito da crítica, ter levado apenas o prêmio de roteiro.
A crítica americana, por sua vez, pesou a mão no fato do país não ter levado um
prêmio sequer, mesmo com recorde de produções em concurso.
Houve sim uma surpresa geral pela escolha do júri presidido
pelo cineasta italiano Bernardo Bertolucci. Sacro GRA não figurava nas bolsas
de apostas, apesar de sua boa cotação entre a crítica. Além do mais, se tratava
de um documentário, gênero jamais consagrado com um Leão de ouro no festival. A
septuagésima edição já havia feito história por incluir dois documentários na
seleção oficial e com a outorga do júri foi além. É disso que tratam,
majoritariamente, as reminiscências do festival. Mas há, também, o fato de que o
cinema italiano não triunfava em Veneza desde 1998 e o fez, agora, com um filme
que mostra anônimos responsáveis pelo fluxo de Roma (da Itália). O filme
acompanha um punhado de personagens que vivem ou trabalham às margens da
cidade, no rodoanel que a circunda (a sigla GRA vem de Gran Racccordo Anulare).
Os personagens, todos reais, são interpretados pelas pessoas que vivem aquelas
vidas. Trata-se de um documentário que borra os limites entre ficção e verdade,
tais como Amor? e Jogo de cena. A opção por este filme, que é
italiano, fala tanto da crise que vive a Itália, política, de confiança, como
da crise que vive o cinema (e Veneza). A opção por um documentário que
relativize ficção e representação em uma seleção tida pela crítica como mediana
ascende a luz amarela no mesmo compasso em que destitui o documentário de forma
de cinema. Tratar o documentário como gênero é uma necessidade e Veneza
sinaliza nesse sentido chamando para si uma responsabilidade e relevância que,
conforme atestado na seção Insight desta semana, vinham se perdendo.
O júri, nesse sentido, fez uma escolha consciente que se
comunica mais com o status quo do que com a mostra que julgava.
O cinema grego, outro grande vitorioso da noite, com os
prêmios de direção e ator, evoca raciocínio semelhante. Miss violence, outro
filme a falar de crise, no âmbito familiar metaforizado, é um cinema de um país
em crise que se obriga a liberdades autorais, transgressividade e, no contexto
político e cultural aludido pelo júri de Bertollucci, deve ser recompensado.
Veneza, no final das contas, soube se impor à falência que insurge nos
festivais de cinema.
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