domingo, 27 de abril de 2014

Carta do editor - Não é o fim

Tem sido uma jornada de sobressaltos. Claquete, como quem com prazer acompanha o blog, é como um filho para mim. E como pai, sempre me predispus a oferecer o melhor para meu filho. Dedicação, talento, cultura e paixão pelo cinema marcaram esses quase cinco anos de história. Não é o fim, mas uma interrupção é necessária. Claquete deu frutos e eu já estreei um novíssimo blog de cinema no portal iG, o Cineclube. Mas não posso me desfazer desse blog, Claquete é da família. Me ajudou a me consolidar como profissional e a exercitar minha paixão pelo cinema, além de ter me apresentado uma série de blogueiros que se provaram tão importantes na minha rotina cinéfila. Gente boa mesmo que gostaria que me acompanhasse nessa nova empreitada. Claquete fica por aqui. Pronto para me receber a qualquer maremoto.
Agradeço imensamente a companhia, o crédito, a referência, a paciência e o apoio de todos vocês, leitores, que fizeram de Claquete seu canto de leitura e amor ao cinema. Os convido, com o mesmo entusiasmo, a descobrir e curtir o Cineclube. Garanto que vocês não vão se arrepender. Até logo!

Reinaldo Glioche


sexta-feira, 18 de abril de 2014

A seleção da 67ª edição do Festival de Cannes

A correria foi grande, assim como os boatos que cercavam o anúncio dos filmes que integrariam a lista dos concorrentes à 67ª disputa pela Palma de Ouro na croisette. E, como de hábito, o anúncio dos filmes selecionados agradou. Com Cannes é assim, como os filmes ainda não foram vistos, há muita pouca controvérsia. A apreciação se dá no número de vencedores prévios em disputa, de cineastas consagrados, de cinematografias privilegiadas, na presença americana, na presença francesa, na musculatura asiática e afins.
Para 2014, alguns favoritos do festival estão de volta. Jean-Luc Godard, David Cronenberg, Olivier Assayas, Jean-Pierre e Luc Dardenne, Xavier Dolan, Mike Leigh e Ken Loach capitalizam a disputa pela Palma de Ouro com o assédio de figuras que crescem em prestígio na Riviera como Michel Hazanavicius, Atom Egoyan e Naomi Kawase.
A briga pela Palma de Ouro traz menos americanos do que nos últimos anos. Eles são quatro. Somados a dois ingleses e a filmes de outras nacionalidades falados em inglês preservam a sensação de que Hollywood invadirá a croisette. Ryan Gosling, Nicole Kidman, Robert Pattinson, Kristen Stewart, Meryl Streep e Tommy Lee Jones são presenças esperadas em Cannes.
Robert Pattinson, em plena reengenharia de carreira, estreia dois filmes no festival. Está em Map to the stars, de Cronenberg, que compete à Palma de Ouro, e em The rover, que será exibido fora de competição e é do mesmo diretor do intenso Reino animal.  
A mostra Um certo olhar terá a première de Lost river, estreia na direção de Ryan Gosling, outro habitué de Cannes. La chambre bleue, novo filme de Mathieu Amalric também estará na mostra, assim como O sal da terra, documentário sobre o fotógrafo Sebastião Salgado assinado pelo filho dele em parceria com o cineasta Win Wenders.
Mais dois filmes devem ser anunciados na mostra principal, mas a presença sólida do cinema francês (Assayas, Godard e Hazanavicius), renovada do cinema americano (Tommy Lee Jones e Bennett Miller) são, sem sombra de dúvidas, a grande atratividade da lista neste primeiro momento.

Mostra competitiva principal

ADIEU AU LANGUAGE, de Jean-Luc Godard

CAPTIVES, de Atom Egoyan
FOXCATCHER, de Bennett Miller
GRACE OF MONACO, de Olivier Dahan
JIMMY’S HALL, de Ken Loach
LE MERAVIGLIE, de Alice Rohrwacher
LEVIATHAN, de Andrey Zvyagintsev
MAPS TO THE STARS, de David Cronenberg
MOMMY, de Xavier Dolan
MR. TURNER, de Mike Leigh
RELATOS SALVAJES, de Damian Szifron
SAINT LAURENT, de Bertrand Bonello
SILS MARIA, de Olivier Assayas
STILL WATER, de Naomi Kawase
THE HOMESMAN, de Tommy Lee Jones
THE PAIN OF BIRDS, de Abderrahmane Sissako
THE SEARCH, de Michel Hazanavicius
TWO DAYS, ONE NIGHT, de Jean-Pierre e Luc Dardenne
WINTER SLEEP, de Nuri Bilge Ceylan



Confira o trailer de Captives, filme de Atom Egoyan que disputará a Palma de Ouro

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Crítica - Capitão América: o soldado invernal

Igual, mas diferente; bom, mas nem tanto

 A Marvel já não precisa provar nada para ninguém e, à medida que seus planos no cinema ficam mais ambiciosos, seus filmes ficam mais reconhecíveis.  Justamente por produzir filmes com a essência do estúdio que o diretor à frente do projeto vem se tornando uma questão cada vez mais desimportante. Os escolhidos para dirigir O soldado invernal, uma produção de quase U$ 200 milhões, foram Joe e Anthony Russo, cujo único crédito no cinema até então havia sido Dois é bom, três é demais (2006), comédia meio assim estrelada por Owen Wilson e Matt Dillon.
Os irmãos dão conta do recado e O soldado invernal é um filme muito bem azeitado. É, também, um passo a frente na direção que a Marvel tem traçada para si no cinema. Tanto na sua famigerada fase 2, iniciada com Homem de Ferro 3 e que irá se exaurir em Os vingadores 2: a era de Ultron (2015), como na receita da casa. O soldado invernal é o produto mais sério da Marvel, mas não deixa de ser um filme com a cara do estúdio. Na lógica corporativista, não dava para ousar tanto, afinal.
A trama se passa dois anos depois dos eventos de Os vingadores e Steve Rogers já está ambientado, na medida em que essa adequação é possível, ao mundo como ele é hoje. O que Rogers não consegue digerir é a política agressiva de espionagem que a SHIED tenta implementar. Em um recorte que o caso Snowden ajudou a tornar mais atual, complexo e convidativo. O roteiro, porém, não ajuda. A (necessária) inserção da Hydra na trama se dá de forma incongruente e espalhafatosa e a história de espionagem é suficientemente banal e horizontal, a despeito da presença sempre sofisticada de Robert Redford como o chefão ambíguo da SHIELD.
Chris Evans, que esteve tão bem no primeiro filme e em Os vingadores, parece crer já ter decifrado o personagem de cabo a rabo e não se esforça para envernizar os conflitos do personagem, que parecem esquecidos em meio a crescente de ação que norteia o filme.
Daí o Capitão chega para a viúva e diz: mas esse filme é meu...
Se há a disposição de rebuscar o material, há também a displicência no tratamento diverso das mídias. Vícios de linguagem e narrativa admissíveis nos quadrinhos, mas contestáveis no cinema (ex: as mortes que não são mortes e são explicadas de maneira preguiçosa), estão começando a incomodar no universo Marvel que segue coeso, mas começa a dar sinais preocupantes.
Como coadjuvante de luxo, a viúva negra já havia provado funcionar muito bem e no novo Capitão América ela reforça essa percepção e faz crescer a expectativa por um filme solo da personagem.
Enquanto entretenimento, Capitão América: o soldado invernal mantém em alta estatura a verve criativa da Marvel. Funciona às mil maravilhas. Enquanto filme dentro do universo Marvel é uma evolução, ainda que menos significativa do que o estúdio quer crer. Como filme, analisado isoladamente, é um produto superior aos demais filmes dessa fase 2 do estúdio (Homem de ferro 3 e Thor: o mundo sombrio), mas o nível não era dos mais elevados. A Marvel segue estável, mas continua refém do ditado de que ser mãe é padecer no paraíso. É torcer para que Guardiões da galáxia (que será lançado em agosto), uma aposta francamente ousada, ajude a Marvel a operar fora da margem de segurança.

domingo, 13 de abril de 2014

Insight - O retorno de Kevin Costner

Kevin Costner em cena de seu novo filme que no Brasil se chamará A grande escolha

Kevin Costner foi por muito tempo “o cara”. Mas quando veio fazer um show com sua banda (ele também faz as vezes de músico country para quem não sabe) em Bauru, no interior de São Paulo, há três anos, muitos decretaram o que já parecia eminente. O vencedor do Oscar e eterno guarda-costas estava acabado para o cinema.
A década passada realmente não foi muito amiga de Kevin Costner. Ele até fez bons filmes como Pacto de justiça (2003), western dirigido por ele mesmo, A outra face da raiva (2005), Instinto secreto (2007) e Promessas de um cara de pau (2008), mas nada que tenha lhe rendido holofotes. Não eram papéis com pedigree o suficiente para lhe devolver ao olímpo hollywoodiano. Mas os ventos parecem estar mudando em seu favor. Tudo por causa da boa recepção, de público e crítica, à minissérie Hatfield & McCoys (2012) que lhe valeu muitos prêmios, inclusive um Emmy e um Globo de Ouro. Costner foi o pai de Clark Kent em O homem de aço (2013) e o mentor de Jack Ryan em Operação sombra- Jack Ryan (2014). Os papéis coadjuvantes em blockbusters temperam um retorno muito bem ensaiado. Em Draft day, estreia deste fim de semana nos EUA, o ator vive um gerente de um time de futebol americano sobre incrível pressão na época do draft, quando os times recrutam os calouros da temporada. 
Costner e Rene Russo em O jogo da paixão
O filme de Ivan Reitman suscita críticas divididas, mas Kevin Costner goza de boa receptividade por seu desempenho. Atuar em filmes esportivos não é exatamente uma novidade para o ator. Entre outros trabalhos, ele esteve em Sorte no amor (1988), O campo dos sonhos (1989), O jogo da paixão (1996) e Por amor (1997). “Acredito que Draft day possa ser um clássico”, disse o ator em entrevista coletiva sobre o filme em Los Angeles.
Mesmo que Draft day não atinja esse potencial que Costner vê nele, o ator já se precaveu. Outro lançamento de 2014 que rendeu bons dividendos ao ator foi Três dias para matar, em que ele dá uma de Liam Neeson. O carisma de Costner rimou com sua rigidez nas cenas de ação. Uma característica que preservou dos tempos do mezzo fracasso O mensageiro (1997).
Recentemente, Costner anunciou o desejo de dirigir uma trilogia de westerns que seria lançada no espaço de um ano. Não custa lembrar que Costner venceu o Oscar com Dança com lobos (1990).
A agressividade de Costner em pavimentar seu retorno ao olimpo hollywoodiano revela que, aos 59 anos, Costner está disposto a protagonizar um dos mais expressivos e contundentes casos de star power do cinema. Em uma era que estrelas longevas como Tom Cruise e Harrison Ford veem seus brilhos fraquejarem, uma estrela cadente pode voltar a brilhar com força. Muita força.

sábado, 12 de abril de 2014

O beijo no cinema

O beijo entre Burt Lancaster e Deborah Kerr em A um passo da eternidade (1953) é considerado um dos melhores da história do cinema

Neste domingo, 13 de abril, é comemorado o dia do beijo e beijo de cinema é aquele que merece ser comemorado. O beijo de tesão, o beijo de arrependimento, o beijo de saudade, o beijo de felicidade, o beijo apaixonado e o beijo desastrado, entre outros, figuram entres tantos beijos históricos imortalizados nas telas de cinema. Mas é justamente o beijo de cinema o que perseguimos do lado de cá das telas.
Essa aura em cima do beijo no cinema tem muito a ver com um ideal romântico que Hollywood vende como ninguém. Nas comédias românticas, o embotamento das relações amorosas cristaliza-se naquele beijo ansiado entre o mocinho e a mocinha. Mas há beijos de tirar o fôlego fora do gênero, como atesta a seleção feita por Claquete com filmes de diferentes gêneros e épocas.
O beijo no cinema é, ainda, expressão de um contentamento que palavras não conseguem tangir. Como o beijo de despedida em Ghost – do outro lado da vida (1990). É, também, mimetização de mudanças intrínsecas a personagens ou prerrogativas de um sedutor.
O beijo no cinema é frequentemente catártico, principalmente em dramas como O segredo de Brokeback Mountain (2005). É instrumento de erotização tenra, como em Azul é a cor mais quente (2013), ou manifestação de máxima intimidade, como em Uma linda mulher (1990).

O beijo no cinema pode ser espetacular, como em O Diário de uma paixão (2004), sob chuva com trilha comovente, ou pueril e genuinamente comovente como em Meu primeiro amor (1991).

Um beijo transcendental e muito comemorado no cinema entre Demi Moore e Patrick Swayze que encerra Ghost - do outro lado da vida  

A cena mais famosa da trilogia original de Homem-aranha é uma cena de beijo muito bem planejada e que, na medida do possível, foi muito repetida por casais mundo afora...

Em Encontro marcado, Brad Pitt é a morte e descobre que o sabor de um beijo apaixonado é infinitamente melhor do que pasta de amendoim...  

Ryan Gosling e Rachel McAdams alvoroçam multidões com o beijo mais cinematográfico entre os beijos cinematográficos no meloso O diário de uma paixão  

 Em Meu primeiro amor, o beijo como expressão de algo ainda não muito bem elaborado...

Harry também beija: Em Harry Potter e a ordem da fênix, Harry Potter deixa dos tempos de BV para trás e se aparta da fase menino...



O evitado, mas catártico beijo em O segredo de brokeback Mountain
 O primeiro beijo, ansiado e tateado, em Azul é a cor mais quente
 E a melhor cena de beijo da história do cinema no crivo do editor de Claquete

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Crítica - Entre nós

Para todos nós

Paulo Morelli escreveu o roteiro do ótimo Vips (2010). Um filme em que colagens temporais davam sentido a uma narrativa muito mais ambiciosa que tinha um personagem em particular como objeto de análise. Em Entre nós (Brasil 2014), cujo roteiro também é de sua autoria, Morelli estreia na direção dividindo o crédito com seu filho Pedro Morelli. A ambição permeia o projeto. Colagens temporais dão sentido à trajetória de seis personagens e de uma geração. Mas não é só. Entre nós quer ser, também, um oásis de criatividade na fauna cinematográfica brasileira. Filme rodado em uma locação só, ampla, mas circunscrita; com elenco mínimo (sete atores mais alguns figurantes) e que alterna drama, comédia e suspense em fluxo de gêneros tão bem amarrado que torna a produção pouco, ou nada, reconhecível em sua brasilidade não fossem os atores (todos bem conhecidos de outros carnavais) e o já famigerado excesso de palavrões que precede o cinema nacional.
O filme começa em 1992. Vemos um grupo de amigos, jovens e idílicos, escreverem cartinhas para que eles mesmos a leiam dali a dez anos em um reencontro. Dez anos depois, o grupo está menor. Um dos amigos morreu de maneira trágica. Outros se afastaram, outros se aproximaram mais, uns experimentaram o sucesso, outros provaram do fracasso e por aí vai.
Entre nós alimenta-se dessa ruptura temporal para nos reapresentar esses personagens, flagrados em contradição com quem eles eram dez anos atrás. Não obstante, há tempo e disposição para rever o imaginário cultural e político de uma geração que ainda responde pelos rumos mais assertivos ou desastrados da nação.
Todos os personagens têm conflitos interessantes. Os de alguns são mais bem melindrados pelo texto de Morelli, que não inventa na direção e oferece ao roteiro e aos atores o protagonismo.

Em uma interpretação mais subjetiva, mas o subjetivismo é o traquejo que faz Entre nós ser tão eficaz enquanto cinema, o filme de Morelli é uma embevecida elaboração sobre amadurecimento e de como esse processo implica em renúncia e dor, mas também em afeto e nostalgia.

terça-feira, 8 de abril de 2014

Insight - De oitenta a oito, a derrocada de Russell Crowe


Russell Crowe já estava em terras hollywoodianas em 1995, quando foi uma das agradáveis surpresas de Rápida e mortal, filme de Sam Raimi que é cheio delas. Mas o momentum em torno dele só começou dois anos mais tarde, quando foi um tira embrutecido e incorruptível no noir definitivo daquela década, o vencedor de dois Oscars, Los Angeles, cidade proibida.
Russell Crowe seria o astro da virada do milênio. Em O informante (1999), que lhe valeu sua primeira indicação ao Oscar, mostrava que era ator de verdade e não um mimo que Hollywood trouxera da Austrália, ainda que Crowe seja neozelandês de nascença naturalizou-se australiano ainda cedo. No ano seguinte, ascendeu à realeza hollywoodiana com Gladiador, que lhe valeu o Oscar já na segunda indicação. Russell Crowe era bonito, indomável e incrivelmente talentoso. No ano seguinte, emplacou a terceira indicação ao Oscar de melhor ator – feito raríssimo e desde então jamais replicado – por Uma mente brilhante que ganharia, a exemplo de Gladiador, o Oscar de melhor filme.
No início do milênio não era possível desviar o olhar de Russell Crowe.  A excelência era tamanha que mesmo em filmes de ação apenas eficientes, como Prova de vida (em que ele foi o pivô do fim do longevo casamento de Meg Ryan e Dennis Quaid), Crowe trazia muito mais ao papel. Os papéis seguintes ao frisson do Oscar estavam à altura de seu talento. Filmes como A luta pela esperança (2005), Mestre dos mares – o lado mais distante do mundo (2003), Um bom ano (2006) e Os indomáveis (2007) tinham como objetivo provar a versatilidade do então já consolidado astro de primeira grandeza em Hollywood.

 "O próximo Brando", destaca a GQ americana no início da década passada...

 A prestigiada revista Time colocou Russell Crowe na capa da edição que objetivava desvendar como o astro foi de bad boy à principal estrela da meca do cinema

Na capa da Vanity Fair em 2003, "se você quer um filme de sucesso, este é o seu homem"

Mas grandes poderes trazem grandes responsabilidades e Crowe tinha um fantasma bem grande em seu encalço. O sucesso de Gladiador que iria possuí-lo de vez em sua quinta colaboração com o diretor do filme que revitalizou os épicos. Antes de Robin Hood (2011) marcar o início da derrocada de Crowe, ele estrelou bons filmes adultos como O gangster (2007) e Rede de mentiras (2008), ambos de Ridley Scott, e Intrigas de Estado (2009). Ali, Crowe estava confortável no papel de astro, mas a excelência de sete anos antes já desanuviava em tiques de atuação.
Crowe ao lado de Jennifer Connelly na premiere
de Noé:
movimentos estratégicos para revitalizar
uma carreira em decadência
Desde de Robin Hood, para todos os efeitos um "sub-Gladiador", Crowe, é verdade, tem tentado diversificar e já fez cinema independente e até musical. Suas participações em O homem com punhos de ferro (2012), O homem de aço (2013) e Um conto do destino (2014), no entanto, deflagram um abismo tremendo entre os filmes que estrela atualmente e aqueles que estrelava há dez, doze anos. Crowe está mais velho, menos bonito e muito menos disposto a deixar de ser Russell Crowe em seus filmes. Diferentemente de Pacino, De Niro e Nicholson que são sempre eles mesmos nos filmes, o australiano não consegue capitalizar. Os filmes em questão são desinteressantes com ele e não apesar dele. Isso quer dizer que Crowe sendo Crowe não consegue desvencilhar-se da ruindade de seus filmes. Noé, outro épico em que ressuscita a aura de Gladiador, Crowe recebeu mais uma penca de críticas negativas. Trata-se de um projeto calculado para devolvê-lo aos bons dias (o fato de dividir a cena com Jennifer Connelly – sua parceira de Uma mente brilhante não é mera coincidência). Ao invés disso, o filme dirigido por Darren Aronofsky pode significar o fundo do poço para o ator. A boa bilheteria, se confirmadas as expectativas, pode diminuir o peso da ancora que Crowe tem amarrada em seu pescoço. Enquanto não mudar sua postura nos filmes e selecionar projetos “com menos perfil de Russell Crowe”, o ator estará flertando perigosamente com a irrelevância. Maior dos pesadelos para quem há não muito tempo era o rei da cocada preta em Hollywood.

domingo, 6 de abril de 2014

Crítica - Noé

O preço da fé

Cercado de expectativas e polêmicas, e inaugurando uma reiterada e ambiciosa fase bíblica em Hollywood, Noé (Noah, EUA 2014) não é um filme que corresponda ao hype que ostenta. Produção de U$ 150 milhões e marcada por desavenças entre o estúdio e o diretor, Noé é um filme cheio de gargalos. Começa muito mal, melhora na metade e termina de maneira pálida e condescendente. Ainda que seja um desafio renovar uma história plenamente conhecida até mesmo por quem tem pouca familiaridade com a bíblia, Noé sofre de más escolhas de direção. A primeira delas é tornar uma história eminentemente simples em um épico. Outra, por exemplo, é valorizar pouco a chegada dos animais à arca e mais a contenda entre o descendente de Cain (Ray Winstone) e Noé.
Há problemas no ritmo do filme e há um elenco muito oscilante também. Russell Crowe está muito ruim. Se colocarmos em comparação sua oscarizada performance em Gladiador e esta em Noé, será flagrado um ator preguiçoso e complacente.
Russell Crowe pouco impressiona como
um Noé virtuoso em sua obstinação
Mas Noé revela também o conflito entre o diretor Darren Aronofsky e o estúdio Paramount. A agenda ecológica do diretor é aventada no curso do filme e é uma sombra à estruturação religiosa da trama. Outro conflito intrínseco à narrativa reside no tom do filme, que obscurece profundamente quando o dilúvio está em curso. É justamente aí, quando Aronofsky apresenta mais consonância com seus interesses enquanto cineasta, que Noé tem seu melhor momento. Quando envereda pela análise do custo que é para este homem temente a Deus, manter sua fé em alta, Aronofsky rabisca um grande filme. Mas é apenas um momento entremeado por uma dicção narrativa confusa, ensimesmada e pouco inspirada visualmente (outra decepção tratando-se de Aronofsky).
Noé era um projeto querido e ansiado pelo diretor, que vinha de sua obra-prima Cisne negro. O estudo dos limites entre fé e alienação, notadamente o interesse primário do cineasta, submerge ante tantos equívocos. Não dá para culpar apenas o estúdio. É compreensível que com um orçamento desse tamanho, a Paramount objetivasse uma produção mais comercial. A culpa recai mesmo sobre os ombros de Aronofsky, Cisne negro, com toda sua reticência de drama psicológico e menos boa vontade do que Noé amealha em boa parte do público, era mais satisfatório dramaticamente.
Noé decepciona porque Aronofsky não se aprofunda na análise que quer fazer e titubeia em decisões que cristalizariam o escopo do filme. O discurso “eco friendly”, ainda que cabível, soa um tanto quanto deslocado das prioridades narrativas.  
O que, para a infelicidade de Aronofsky, pesa mais contra o filme, além das licenças pouco convincentes que toma da bíblia, são aqueles 20 e poucos minutos em que seu filme beira a genialidade. 

sábado, 5 de abril de 2014

Crítica: Ninfomaníaca - volume II

Sodomizando o público

Ninfomaníaca – volume II (Nymphomaniac: volume II, FRA/ALE/DIN 2013) é, em muitos sentidos, um filme distinto do primeiro volume. Mas falemos primeiro das similaridades. Tanto lá como cá, Von Trier provoca e frustra o público. Seja em uma anunciada suruba com homens negros, seja na incipiência com que investiga Joe (interpretada por Stacy Martin e Charlotte Gainsbourg) ou na profusão de metáforas inortodoxas que lança mão na figura de Seligman (Stellan Skarsgard), cuja função na narrativa se entremeia entre fazer as vezes do crítico de cinema (em um deboche divertidíssimo do cineasta), do público e, também, do alter ego de Von Trier.  
Às diferenças, então. Como previsto na crítica do blog do volume I, Von Trier se aproxima mais de Joe nesse segundo tomo. As inquietações físico-emocionais da protagonista são circundadas com maior zelo pelo cineasta que se mostra menos hermético e mais dado aos clichês que gravitam o senso comum da sexualidade. O que não quer dizer que Von Trier não faça provocações aqui e ali como quando faz com que o público se simpatize (com muito fundamento) com um pedófilo. Aliás, esta cena já entra para a galeria das melhores de 2014.
Ninfomaníaca –volume II parece enredar a tese de que o sexo é expressão definitiva para a identidade pessoal. O filme é substancioso em elaborar questionamentos irresolutos sobre fetichismos e sadomasoquismo. O estreitamento entre dor e prazer, em Von Trier, é algo muito menos sórdido e complacente do que as chibatadas que K (Jamie Bell) em Joe sugerem.
O desejo escravagista também tem seu espaço e ele pode se manifestar tanto no pedófilo oculto como na ânsia por humilhação que move a relação entre Jerôme e Joe.

Joe em sua busca por satisfação: o desejo por uma experiência radical e inédita lhe aproxima do orgasmo mais puro e metafísico já experimentado

Diferentemente do primeiro volume, são menos os arquétipos e mais os personagens, que articulam a trama. Uma bem vinda mudança de tom e que complementa, ou antecipa, uma mudança radical proposta pelo cineasta na última cena do filme. Pouco antes desta surgir, Von Trier prepara seu público em uma fala de Seligman: “As vezes, tudo o que você precisa é de uma mudança de ponto de vista”. Dito e feito. Apropriando-se de um discurso feminista ressentido, ele surpreende a plateia ao adensar a lógica da impossibilidade de amizade entre homens e mulheres. Radicalizando totalmente a dialética da trama com uma descarga de ironia e cinismo em face de uma atitude condescendente surpreendentemente pueril de um dos personagens.
O mecanismo obriga o público a rever toda a construção dramática que se deu até ali. Enquanto cinema é um exercício estético/ narrativo fascinante.

Por fim, a moral de uma cultura ocidental inflexível e anabolizada em sua relação com o sexo é devassada com rigor e imaginação, dueto possível apenas no cinema de Von Trier. O dinamarquês não se furta a pequenos gestos de malícia como referenciar-se ou incutir humor onde não se poderia concebê-lo, mas mesmo essa masturbação intelectual reforça o status de Ninfomaníaca – volumes I e II de filme robusto, plural, multifacetado e, acima de tudo isso, provocador; ainda que não o seja da maneira que o público projetava. Está aí, finalmente, nessa sodomização ansiada (e muito bem executada) o trunfo definitivo de Von Trier.