domingo, 6 de junho de 2010

Insight


Cinema de arte: isso existe?


É uma discussão antiga e tão enclausurada em si que fica difícil fugir dos lugares comuns aventados com o passar dos anos. Não há evolução no debate e cada nicho, cada pensador do cinema, tem sua convicção. “Cinema é arte!” “Cinema é indústria!” “Cinema é arte para as massas!” “Cinema é a corrupção da arte!” “Cinema é a arte industrializada!” “Cinema só é arte quando feito de maneira experimental!” “O cinema se perdeu da arte!” “Se o cinema não se reinventar deixará a arte para trás!”. Muitos são os “achismos”, os diagnósticos e os inevitáveis prognósticos em relação ao tema. Muitos consideram o cinema uma arte pagã. O que seria uma forma de rebaixá-lo como arte. Outros, por seu turno, consideram o cinema a arte mais completa que existe (e também a mais fascinante), por possibilitar que todas as outras formas de artes sejam, de alguma maneira, confluídas.
Como atenta o parágrafo que abre o texto, cinema de arte é uma equação longe de um desfecho. Postula-se de um lado que o cinema de arte é uma artimanha marketeira que se renova ano após ano em festivais (que no fundo só existiriam para fazer dinheiro), enquanto que na outra frente, argumenta-se que o cinema em si fora concebido como arte, mas deturpado por ideais capitalistas. Seria essa a razão de cineastas imaginativos e alinhados a esquerda serem tão celebrados por uma crítica de cinema que parece tão dissonante de seu público.



A Pixar, estúdio de filmes como UP -altas aventuras (a animação na foto), e Christopher Nolan, diretor de insônia (o filme da direita na foto) conjugam fórmulas comerciais em filmes de arte



O bom desse debate que atravessa gerações é que todos os argumentos que provocam sua longevidade são válidos. O cinema de arte é algo difícil de definir. É lógico que não está no estardalhaço de efeitos especiais de Transformers, mas você pode encontrá-lo em blockbusters hollywoodianos como Batman – o cavaleiro das trevas, O exterminador do futuro 2, Blade Runner – o caçador de andróides, Wall E, O sexto sentido e O curioso caso de Benjamin Button. Há quem pense que Blockbusters e filmes de arte são incompatíveis por natureza. Esse é um preconceito tão atroz quanto supor que um negro seja menos capaz que um branco.
O cinema prima pela equivalência e há quem se dedique a fazer filmes ditos “de arte” e não consiga fazê-los. Os filmes de David Lynch são considerados “de arte” por que grande parcela de quem os assiste não consegue entendê-los. Isso pode muito bem ser classificado como uma incorreção, além da óbvia boa vontade para com o diretor em questão. Ora, se não se entende como rotular uma obra cinematográfica? A arte pode muito bem encontrar lugar em um filme mais comercial. Christopher Nolan, que constrói uma das carreiras mais reluzentes em Hollywood, é dos diretores mais bem sucedidos nesse departamento. Filmes como Amnésia, Insônia, O grande truque e os capítulos de Batman que dirigiu são todos voltados para um público abrangente, mas dotados de questões que permeiam os ditos “filmes de arte”. Essa contradição ajuda a elevar o debate e rechaçar qualquer parecer definitivo. Por isso é retrógrado apontar que Cannes celebra a arte e o Oscar celebra a indústria. Os dois, em proporções diferentes (é bom que se deixe claro) celebram os dois modelos de produção cinematográfica. O cinema de arte precisa do cinema comercial para existir, enquanto que o cinema comercial não pode prescindir do cinema de arte para que se viabilize a partir do contraponto.


Cena de O curioso caso de Benjamin Button: blockbuster sim, mas muito mais profundo do que um passatempo para se comer pipocas....


Há interessantes casos que embaralham ainda mais a noção de cinema de arte. Peguemos Quentin Tarantino por exemplo. Tido como um expoente moderno do cinema de arte, os detratores do diretor de Bastardos inglórios dizem que ele apenas recicla filmes antigos em um liquidificador pop. A simplificação do cinema de Tarantino permite uma inflexão. De fato, o diretor conflui referências cinematográficas (e musicais, e literárias, etc) com habilidade ímpar. Seu estilo chega a ser profano. Mas Tarantino é acessível. Seu cinema “de arte” parece assim o ser em virtude das circunstâncias. Os baixos orçamentos do inicio da carreira e ser cria de festivais (veio a Mostra de São Paulo em 1992 para exibir seu filme de estréia Cães de Aluguel e todo novo lançamento debuta em Cannes) ajudaram a consolidar Tarantino como um diretor de filmes de arte. Ah, então ele não é diretor de filmes de arte? O ponto não é esse. Bastardos inglórios (seu melhor e mais maduro filme) é uma produção de U$ 70 milhões e estrelada por um Hollywood star (Brad Pitt). Não são esses predicados de um filme comercial?
Tarantino faz cinema de arte? Faz cinema comercial? Tarantino faz bom cinema! E o bom cinema deve ser tomado, antes de se enveredar por rótulos secundários, como arte.

Burton e Tarantino: Estilo e subversão são sinonimos de arte no mundo do cinema


Poster italiano de Bastardos inglórios: orçamento de U$70 milhões, Brad Pitt a frente do elenco e segunda guerra mundial não foram suficientes para taxá-lo de blockbuster (nem mesmo a bilheteria de U$ 250 milhões ao redor do mundo).

Tim Burton é outro que pratica arte em filmes comerciais. Dono de uma concepção visual onírica e delirante, Burton conseguiu ajustar fórmulas comerciais a um cinema carregado de cores pessoais. Burton e Tarantino descendem diretamente de Traufaut e Godard, críticos de cinema que viraram cineastas (admiradores do cinema americano e de Hitchcock) que foram vértices da Nouvelle Vague, movimento francês que popularizou a teoria do autor no cinema. De acordo com esta teoria, o diretor é o criador maior de um filme. A percepção que se tem do cinema de arte desde então, mudou irrevogavelmente. Perceba que grande parte da crítica se orienta também pela teoria do autor.É por isso que filmes que trazem uma marca autoral de seus realizadores (seja essa marca reciclagem ou delírios visuais) são tidos como filmes de arte. No caso de David Lynch, a marca é não ser inteligível.

David Lynch é um autor cultuado: a arte dele é não ser inteligível


A pretensão sempre é desestabilizadora. Isso vale tanto para o cinema de arte quanto para sua contraparte comercial. E é com isso em mente que se deve apreciar um filme. A arte tem de ser mutável, atraente, instigadora, inteligente, conflitante, motivadora e libertária. Se um filme faz valer algum desses adjetivos, você pode chamá-lo sem medo de errar, de filme de arte.

Obs: A coluna dessa semana foi inspirada pela repercussão do editorial de maio intitulado "O mês da arte". Em maio, além da realização e da cobertura do festival de Cannes, Claquete realizou especiais sobre dois filmes ditos " de arte" O mundo imaginário do doutor Parnassus e Tetro (que foram escolhidos pelo leitor em enquete). A reação ao editorial gerou uma pauta imediata para a coluna insight. Semana que vem, o debate será aprofundado.

6 comentários:

  1. Acho engraçado ver o povo cult que idolatra Tarantino e abomina os próprios filmes que ele usou como referência pra criar o seu cinema.

    Pra mim, essa discussão filmes de arte X blockbusters são muito mais sustentadas por um culto a certos diretores e àquilo que é considerado cult do que ao próprio conceito de filme de arte. Enfim, a minha opinião é tendenciosa porque sou uma dessas fervorosas que odeiam pseudo intelectuais. Fazer o quê, né?

    ResponderExcluir
  2. Ótima discussão, Reinaldo! Cinema de arte, de fato, existe! Desde sempre, até porque é o cinema de arte que permite que a linguagem cinematográfica evolua, que as experimentações sejam feitas, que as pessoas coloquem para fora as suas vazões e concepções artísticas com liberdade e sem imposições de grandes estúdios. O ideal é que se alcance o equilíbrio entre arte e cinemão! E isso é feito, acredito!

    ResponderExcluir
  3. estou encantando e ao mesmo tempo emputecido com o seu texto, Reinaldo. Parabéns! Discussão primorosa e abordagens muito bem pautadas e argumentadas. Aplausos em pé! =)

    mas discordamos abruptamente de David Lynch. Fala isso dele, não, poxa rs. Lynch não está lá para explicar, e sim para confundir. É esse enigma, a antiresposta que torna seu cinema tão maravilhoso. Senti um gosto amargo de desdém quando o nome desse grande gênio foi citado. Mas cinema não é apenas uma história (e eu sei que tu sabes disso), é uma ferramenta para expressar seus sentimentos, externalizar os seus demônios, propor desafios aos espectadores. David Lynch faz isso, considero um cineasta brilhante e desafiador. Cada filme dele eu descubro algo a mais, são os detalhes, os pormenores e as peculiaridades que enriquecem a filmografia intacta desse diretor fantástico.

    Não vejo pretensão em Lynch, mas considero-o um artista plástico que se expressa através do cinema. Conta histórias arrebatadoras e tem uma mão e um senso de direção fantástico. Explicar por que já que tudo nessa vida é inexplicável? rs

    Reinaldo, tu não gosta do David Lynch? =(


    belíssimo texto, mais uma vez. Talvez o melhor que tenha lido em Claquete - talvez não o melhor, mas o que tenha mais me apreciado. Uma discussão que acho que não morrerá jamais! Aliás, adora a Insight, acho que é a minha seção preferida do blog =)


    grande abraço!

    ResponderExcluir
  4. S.:Seu raciocínio não está totalmente desvinculado da verdade S. Realmente, a celebração a determinados "autores" acaba embaralhando a concepção de arte.Isso não ocorre apenas no cinema. bjs

    Kamila: Concordo com vc Ka. foi o que eu disse no texto, essa simbiose entre cinema de arte e cinema comercial é mais necessária do que muitos julgam e gostariam de dar crédito.

    Elton: Grande Elton! Sempre com intervenções das mais interessantes, embasadas e desafiadoras. Primeiramente, muito obrigado mesmo pelas deferências e pelo reconhecimento. São de grande valor e estímulo. Fico feliz que tenha apreciado o debate, o texto, e que reconheça (e se entusiasme) com a longevidade do mesmo.

    Quanto a David Lynch, embora não compartilhe de seu entusiasmo pela obra do cineasta, não desgosto dele. Concordo peremptóriamente quando vc diz que ele é um artista plástico que se expressa pelo cinema. Acho isso encantador,além de muitíssimo bem vindo. Antes de prosseguir na argumentação, faço questão de destacar meus filmes preferidos dele: Homem elefante, Veludo azul e Cidade dos sonhos.
    Isso posto, não retiro a afirmação de que seu cinema não é intelegível.Tão pouco a afirmação de que há boa vontade para com Lynch. Como vc bem trouxe avante, ele faz as vezes de um artista plástico e, bem sabemos, que essa forma de arte não necessariamente é inteligível. Não sempre. Acho que a característica dele é essa. que vc chama de "antiresposta". Não digo que não seja arte, apenas digo que não pode, e não deve, se apressar essa conclusão. E penso que em casos como Lynch, Von Trier, e alguns expoentes do movimento dogma, haja essa conivência da crítica de cinema. Algo como: "Vocês não precisam fazer algo legítimo, basta radicalizar esteticamente". Acho isso pueril e simplificador. Como encerro o artigo, no entanto, digo que o cinema de arte prima pela liberdade, pela motivação, pelo conflito, por instigar, cativar. Inegavelmente,Lynch faz isso (embora, novamente, considero que o faça em proporções bem menores do que lhe dão crédito).
    O que quero dizer é que Lynch é mais provocador do que um autor. E é essa a diferença que escapa as vezes ao distribuir rótulos.
    Grande abraço!

    ResponderExcluir
  5. Sabe que é uma discussão muito difícil, acredito que por mais que um filme seje apenas feito para arrecadar na bilheteria, ele possa tare algo de 'arte', afinal prefiro acreditar que o diretor de um exato longa, queira passar algo com seu filme por mais comercial que seja.
    É fácil distinguir um filme de arte com um comercial, mas é difícil falar neste aspecto (para mim), pois acho que teria que pensar muito no assunto, para poder fazer uma melhor análise, eu tento correr de filmes muito comerciais (Fúria de Titãs, Transformes..), e tento sempre buscar algo diferente, simples e que venha me fazer pensar na proposta feita por aquele filme. Deu pra entender ? rs
    Pois bem, eu já havia lido o seu texto duas vezes e nem ia comentar, mas preferi entrar na discussão, mesmo que para falar nada com nada. Mas, enfim talvez eu nunca mais ache um texto tão bom, explicativo e com argumentos plausíveis com o teu.
    Parabéns =)
    Abs.

    ResponderExcluir
  6. Alan, muito obrigado pelos elogios. Fiquei muito, mas muito feliz mesmo ao lê-los. Mais ainda por vc ter se decidido entrar na discussão. Ela é legítima e tem em si sua plenitude. Seu raciocínio está corretíssimo. Salvo exceções notórias como Transformers, Todo mundo em pânico e congêneres, é legítimo entender que o diretor queira passar algo. Perceba novamente a influência da teoria do autor. A questão é que o conceito de arte é muito mais amplo.
    O cinema já é uma arte. Repare que ela não é a única que sofre esse tipo de rachadura. Existe a música erudita, a MPB (tudo considerado arte), a a chamada boa literatura ou vc nunca ouviu a frase "Paulo Coelho não é literatura!"? rsrs
    É uma discussão interessante e gosto de pensar que me aproximei de um quadro bem próximo da "realidade ideal" (se é que esse é um conceito inteligível, rsrs)com esse texto. A proposta era problematizar mesmo. Mostrar que muitas vezes o que tomamos por expressão de arte não o é, e onde menos achamos provável encontrá-la, lá ela está. Não me lembro o pensador grego que disparou a frase: " A arte só é completa quando individual". E aí, é ou não é? rsrs

    abs

    ResponderExcluir