terça-feira, 2 de abril de 2013

Crítica - Dentro da casa



Assustadoramente sedutor!

Em um dado momento de Dentro da casa (Dans La Maison, FRA 2012), de François Ozon, filme que indiretamente discute a arte em várias de suas esferas, surge um cartaz de Match point –ponto final, obra prima de Woody Allen e, na avaliação do mesmo, seu melhor filme. Talvez, essa rápida e quase imperceptível menção a Allen seja a maneira sutil de Ozon, também ele um cineasta prolixo de média de um filme por ano, sugerir que este excelente filme que esmiúça em camadas cada vez mais insuspeitas a natureza humana seja a sua obra prima. Os filmes, aliás, guardam algumas semelhanças temáticas e estruturais.
Coincidência ou premeditação, Dentro da casa é o melhor filme da carreira irregular, mas ainda assim notável, de um dos mais expressivos e versáteis cineastas franceses.
No filme, Germain (Fabrice Luchini) é um escritor frustrado que ministra aulas de literatura entre o enfado e a desesperança. Eis que ao se deparar com o talento do jovem Claude Garcia (Ernst Umhauer), o professor se toma de vigor e entusiasmo e passa a aconselhar, em privado, o aluno – em uma relação de mestre e pupilo de muitas rotações. Claude escreve com desdém e sarcasmo sobre o cotidiano de uma família de classe média francesa, a família de seu melhor amigo Rapha, mas que mais parece uma cobaia para seu experimento – que muitas vezes pouco remete à literatura.
Sem se perceber, ainda que sua esposa, papel de Kristin Scott Thomas, lhe advirta vez ou outra, Germain se vê enredado em uma auspiciosa trama de manipulação por Claude, que desperta no professor o gosto pelo yoyeurismo.

Voyeurismo, sofisticação e arte: Dentro da casa propõe uma análise riquíssima sobre a natureza humana

Ozon discute não apenas o poder da imaginação como elemento transformador da realidade, algo já visto este ano no realismo fantástico de Indomável sonhadora, ou o poder da palavra como elemento desestabilizador, tão bem encampado no ótimo Desejo e reparação (2007), mas debate também a arte como catalisadora das emoções humanas. O talento de Claude para a dissimulação vem antes ou é reflexo de seu interesse pela literatura? Germain é ingênuo ou de fato se apaixonou por seu aluno? A realidade opressora de Claude e sua inveja pela família de Rapha foram suficientes para aguçar seu tino literário ou foi apenas um ocasional, e em formação, olhar voyeur? O desejo por Esther (Emmanuelle Seigner), mãe de Rapha, altera os rumos da história ou já fazia parte da história? Ozon responde todas essas perguntas ensejando ainda mais material para análise. A riqueza temática e narrativa de Dentro da casa é vistosa. Há, ainda, a observação da lapidação do talento e de como ele precisa de estímulos, nem sempre éticos, para arvorecer.
Tudo desenvolvido de maneira sensual e sofisticada. Ozon adorna sua trama de mistério com elegância e odor sexual e torna a figura de Claude atraente também para o olhar do público. O personagem revela-se mais – ainda que boa conta de sua iconografia fique por conta do espectador – na cena final – um colosso de dramaticidade e eloquência em que Ozon tira da abstração das ideias a concretude de seu argumento poderoso e sedutor sobre a vergonha, e seu componente de genialidade, que escondemos dentro de nós mesmos e apenas alguns têm a ousadia de revelar. 

6 comentários:

  1. Adoro o cinema de François Ozon. Uma pena que seus filmes quase não chegam na minha cidade. Gostei muito de sua crítica para "Dentro de Casa" e espero que eu possa ter a chance de conferir o longa nos cinemas de Natal.

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  2. Reinaldo,
    Estou louca para ver esse filme e a sua crítica aguçou ainda mais essa minha vontade.
    Como toda boa cinéfila, tenho a minha dose de voyeur, e esse tipo de história sempre se mostra intrigante.

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  3. Kamila:Tb adoro Ozon. Mesmo que fique para o DVD, não deixe de ver Ka.
    Bjs

    Patrícia: Obrigado pela deferência. É verdade. Cinéfilo que se preze é também voyeur. "Dentro da casa" é um deleite!
    Bjs

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  4. Por sugestão sua, assisti ontem.
    Gostei muito e fiquei realmente intrigada com o jogo de manipulação de Claude.
    As suas considerações são muito pertinentes: "O talento de Claude para a dissimulação vem antes ou é reflexo de seu interesse pela literatura? Germain é ingênuo ou de fato se apaixonou por seu aluno? A realidade opressora de Claude e sua inveja pela família de Rapha foram suficientes para aguçar seu tino literário ou foi apenas um ocasional, e em formação, olhar voyeur? O desejo por Esther (Emmanuelle Seigner), mãe de Rapha, altera os rumos da história ou já fazia parte da história?".
    Para mim, nem todas as perguntas foram respondidas. E gosto disso.
    Não sei em que sentido você empregou o adjetivo, mas não considerei Claude atraente. Sentia um certo "abuso" quando via seu sorriso irônico e malicioso. Talvez por ele assumir um grande prazer em algo que todos nós sentimos, mas tentamos esconder.
    Voyeurismo. Inveja. Manipulação. Decepção. Sedução. Metalinguagem...
    Todos esses elementos se conjugam e tornam a trama envolvente e excelente.
    Ah, não vi o quadro do Woody Allen. Li sua resenha antes, mas acabei esquecendo de prestar atenção :(

    Liana Alencar.

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  5. Liana, fiquei muito feliz com seu comentário. Obrigado de verdade pela referência e credibilidade. Fico mas feliz ainda que tenha gostado do filme. As perguntas ensejadas por Ozon não são respondidas, mas há insinuações que favorecem interpretações bastante firmes. Mas o poder d asugestão é mesmo muito valorizado nesse filme. Um triunfo, na averdade.
    Afirmei que Claude era atraente para o olhar do público. Conforme a trama avança, mais queremos ter contato com o personagem. Não fiz menção à atração física que ele possa ou não exercer para um olhar voyeour.
    O cartaz de "Match point" surge ao fundo quando os personagens de Kristen e Luchini estão na fila do cinema discutindo um dos capítulos do romance de Claude.
    Bjs

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  6. Esse filme trabalha com as questões da leitura, visto que leitura vai bem além do texto escrito; uma leitura de mundo, de obras de arte, etc. Todo narrador, antes de escrever, faz uma leitura de mundo, depois disso escreve e manipula a história que ocorre segundo sua ótica, no caso, Claude. É um filme de construção, metalinguagem, o efeito no leitor, as interferências da leitura na vida dos leitores, no caso o professor e sua esposa. Um ótimo filme que explora a linguagem em vários níveis.

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