domingo, 28 de abril de 2013

Insight - O reflexo do ator


A seção Insight da semana passada analisou a partir de um comentário do cineasta Danny Boyle a capacidade de um astro de cinema, do calibre de um Brad Pitt, de uma Julia Roberts, de um George Clooney de distorcer – para adotarmos a palavra usada por Boyle – um filme. Ficou convencionado que essa distorção pode ser tanto positiva quanto negativa e que se estende desde os meandros da pré-produção de um filme até a recepção, e percepção, deste pelo público.
Foi a leitora Patrícia Ströher quem atentou para outro recorte muito pertinente e que foi omitido da análise. E quando um astro pode dar novo corpo a um personagem? Alterar a percepção que o público tem da trama? Do conflito? Quando isso é positivo? Quando é negativo?
É fato consumado que um astro é capaz de capitalizar a atenção de público e mídia em torno de um trabalho em particular. Recentemente, o cineasta cearense Karim Aïnouz disse em entrevista ao jornal O Globo que quer Wagner Moura, um dos atores com quem trabalhou em Praia do futuro – em processo de finalização - como protagonista de seu novo projeto: um filme que pretende discutir o fundamentalismo religioso no Brasil na esteira da polêmica envolvendo o deputado Marcos Feliciano – um pastor notório por declarações carregadas de preconceito – na presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. “Preciso de um ator que seja capaz de provocar o debate no público”, disse Aïnouz.
Está aí, exposta, a capacidade transformadora de um astro de primeira grandeza em um projeto específico. Aïnouz é sábio em prever que com Moura em um papel chave de um filme que se pretende ruidoso, ele ampliará a margem de alcance da produção. Sabe também que Wagner Moura é o tipo de intérprete capaz de estabelecer uma espiral de diálogo com o público em cada personagem, em cada projeto. Tanto pelo carisma como pela profundidade de seu trabalho. É natural que queira se beneficiar dessa condição.
Wagner Moura: astro nacional capaz de reverberar no
público
Os produtores e realizadores do novo Superman, que chega em julho, se depararam com situação peculiar. Diferentemente do filme de 2006, quando se buscou alguém com o biotipo e expressão que remetesse ao imortal Christopher Reeves, objetivava-se um rosto novo que trouxesse uma nova identificação para Superman. Muitos nomes foram aventados, entre eles o do protagonista da série Mad men Jon Hamm, optou-se pelo inglês Henry Cavill cujos maiores créditos até então haviam sido uma participação em um filme de Woody Allen e na série The Tudors. A opção por uma figura de nenhuma expressão no mainstream americano atende às prerrogativas dos produtores de reimaginar o homem de aço. Algo que não seria totalmente possível com atores já experimentados.
O cineasta Ang Lee, que venceu o Oscar de direção por As aventuras de Pi, teve raciocínio semelhante na pós-produção deste filme. O elenco do filme é constituído majoritariamente por desconhecidos – à parte uma breve aparição do francês Gérard Depardieu. Mas nem sempre foi assim. O jornalista que ouve o relato fantástico de Pi (Irrfan Khan na fase adulta) foi interpretado por Tobey Maguire. Na pós-produção, Lee percebeu que a presença de Maguire gerava um desequilíbrio no sentimento da história e na percepção dela. Conversou com o ator e o cortou do filme. As cenas foram então regravadas com o ator Rafe Spall, ilustre desconhecido, como o jornalista/escritor interlocutor de Pi.
David Fincher e Rooney Mara: o
diretor não queria uma estrela
formada para viver Lisbeth
Salander em sua versão do best
seller original da trilogia
Millenium, Os homens que não
amavam as mulheres
Há, também, as expectativas do público para certo ator. E são elas que geram esses desequilíbrios. Heath Ledger é um exemplo clássico. Por duas vezes ele desafiou as expectativas que o público tinha dele. Feito galã, Ledger surpreendeu público e crítica com sua atuação devotada, minuciosa e cheia de sentimento de um cowboy que não sabe exatamente o que fazer quando se descobre amando outro homem em O segredo de Brokeback mountain, do mesmo Ang Lee. Ledger, aliás, estava inseguro quanto a aceitar o papel. Foi sua namorada na época, a atriz Naomi Watts, quem o encorajou. Pouco tempo depois, Christopher Nolan seria bastante contestado ao anunciar Ledger como sua escolha para viver o coringa no segundo filme de sua trilogia do cavaleiro das trevas. Essa história, todos sabem, terminou com um Oscar póstumo a Ledger após uma campanha sem precedentes entre público, crítica e indústria para que isso ocorresse.
O contrário também acontece. O drama Lembranças é um ótimo exemplo. Rodado em plena coqueluche por Robert Pattinson – o galã da franquia Crepúsculo – o filme se viu modificado pela presença do astro em apelo midiático, mas fundamentalmente em sua organização narrativa. A amargura de Edward (personagem de Pattinson) em Crepúsculo migrava em um movimento aleatório para Lembranças sem grandes justificativas. Era Pattinson trazendo consigo o olhar da plateia sobre ele.
Há, ainda, a maneira como um personagem é trabalhado por um astro. Brad Pitt e Tom Cruise podem ser convocados para essa análise. Nos últimos dez anos, enquanto Cruise buscou projetos para reforçar sua celebridade, Brad Pitt buscou aqueles em que ela poderia desaparecer. Foi coadjuvante de produções embevecidas na ironia e auto referência como Queime depois de ler e Bastardos inglórios e elegeu projetos em que seu peso como astro jogava a favor da história – como O curioso caso de Benjamin Button – lógica inversa à adotada por Cruise, em que a história jogava a favor de seu status de astro – como O último samurai.

Brad Pitt, por meio de sua produtora (Plan B), ofereceu um roteiro ao cineasta austríaco Michael Haneke, com quem Pitt gostaria de trabalhar, mas o diretor de Amor e A professora de piano declinou do convite dizendo que "trabalhar no esquema de Hollywood é algo que não lhe interessa no momento" 

Heath Ledger se transformando no coringa: uma performance certamente surpreendente para muitos que não imaginavam que Ledger fosse compatível com o personagem

Um astro pode ser um peso ou um bálsamo para determinados personagens ou projetos. Em um personagem suficientemente forte, escalar um astro talvez seja excessivo ou apenas a proposta adequada. Em última análise, cabe ao diretor vestir seu filme. É ele quem será o juiz, ainda que em primeira instância, dessa vaidosa disputa.

3 comentários:

  1. Mais uma vez, um excelente texto, Reinaldo. Como tinha comentado num post anterior seu, o que um grande ator pode trazer a um projeto é credibilidade, é força, o impulso que faltava para ser concretizado. Isso pode ser bom ou ruim, em alguns casos. Especialmente se o ator tiver voz na liberdade criativa do diretor. Porém, acho que você ilustrou bem as boas e más maneiras que um ator pode refletir nos projetos em que se envolve.

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  2. Reinaldo,

    Impecável a análise. O caso de Heath Ledger é expressivo e demonstra bem como a profundidade de um ator conhecido ou não, pode dar contornos não imaginados para um personagem, e no caso do jornalista de As aventuras de Pi, como é interessante essa "ocultação" do astro em favor do personagem.
    Acho que também podemos acrescentar a essa questão o personagem em si, a sua história. A carga de expectativa que ele carrega quando já existia no imaginário do espectador, como é o caso de adaptações, histórias em quadrinhos, refilmagens. Daniel Day Lewis como Lincon pode servir perfeitamente como exemplo. A construção de um personagem que, dentro do imaginário comum, já existia.

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  3. Kamila: Obrigado pela referência Ka. E disse tudo!
    Bjs

    Patrícia: Obrigado. Precisamente. Daniel Day Lewis é um exemplo perfeito. Assim como Tony Stark, hoje indissociável de Robert Downey Jr e Downey Jr. indissociável de Tony Stark. E James Bond, que é um personagem que teve que se reconstruir depois de "abandonado" por seu intérprete? É como o parágrafo final do texto sucintamente alerta, há escolhas que a história discordará e outras que endossará. E nem sempre são os diretores os responsáveis por tais escolhas, né?
    Bjs

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