segunda-feira, 19 de março de 2012

Crítica - Shame

Orgasmo infeliz

Shame (Ingl 2011) apresenta dois personagens auto-destrutivos. Brandon (Michael Fassbender) é um executivo nova-iorquino bem sucedido e viciado em sexo. Sua rotina dedicada exclusivamente à luxúria carnal é interrompida pela chegada da irmã Sissy (Carey Mulligan) que apresenta um outro tipo de promiscuidade que está diretamente relacionada à dependência afetiva e emocional que ela sinaliza. O interessante é que esses personagens, ainda que tenham dificuldade em tomar ciência dos próprios demônios, diagnosticam o outro com alguma desenvoltura.
Steve McQueen realiza um filme com tantos predicados que diagnósticos parecem supérfluos em uma fita que busca, primeiro, salientar as possibilidades nauseantes do excesso de liberdade e, segundo, mas inerente a este contexto, tratar o sexo como vício e compulsão com um enfoque que jamais lhe foi dado.
Brandon é um homem bem sucedido, mas incapaz de se conectar. Aparentemente à vontade com essa condição pós-moderna, e a ambientação em Nova Iorque ganha sentido estupendo nesse aspecto, à medida que o filme avança Brandon vai ganhando consciência de que é prisioneiro de sua liberdade.
McQueen é muito feliz no registro que faz do vício de Brandon. O diretor “deserotiza” sua mise-en-scène e busca dar vivacidade à “fome” de Brandon ao flagrar pedaços de corpos e transformar as cenas de sexo em movimentos mecanizados e sem muita graça. A fotografia saturada, por vezes escura, também inibe alguma sensualidade que pudesse erigir.
Engana-se, porém, quem pensa que McQueen cede ao moralismo. Ele desvia-se teimosamente dele. A cena final, inclusive, demonstra isso. Depois de percorrer um doloroso pathos, Brandon é confrontado novamente com a “droga” que tanto lhe consome e somos negados a qualquer indicação de como reagirá após sua recém-adquirida consciência do mal que lhe acomete.

Brandon, vivido soberbamente por Michael Fassbender, em raro momento de vulnerabilidade em Shame


Antes desse final, testemunhamos Brandon ter uma “overdose”. Sua necessidade pelo orgasmo é tanta que ele até mesmo cede à experimentação homossexual em um clube gay, flerta perigosamente com a namorada de um valentão e faz sexo com duas profissionais. O momento em que atinge o gozo é, também, aquele em que se evidencia o suplício de sua existência. A face de Fassbender se transfigura na imagem da tristeza de tal forma que é impossível não se sentir atordoado com tamanha angústia.
Shame é um filme que depende muito de seus atores. Como se constrói sobre aquilo que eles podem sugerir, através de sentimentos retidos, e mostrar, através de corpos expostos, a força do filme reside na capacidade de seus protagonistas em articular personagens tão desarticulados.
Desse ponto de vista, a nudez de Fassbander, ator que se permite ser contemplado até mesmo urinando, é providencial para o sentido que Shame objetiva construir. O mesmo pode se dizer da primeira vez que Carey Mulligan surge em cena, nua. Era necessário para pavimentar a natureza da relação conturbada e de intimidade fragmentada entre Brandon e sua irmã.
McQueen é hábil ao expor seu protagonista, o que para alguns pode ser tomado como fetiche. Desde sua ansiedade inescrupulosa – que pode ser vista no olhar penetrante que dispensa à paqueras em geral - ou na falta de tato com uma mulher que inadvertidamente lhe desperta algum interesse; e como essa inadequação afetará sua virilidade, para que depois ele a recupere em mais um desmando de sexo sem intimidade, pelo orgasmo puro e simples.
É inegável que Michael Fassbender, mais do que o sustentáculo de Shame, é sua alma. Ator incrivelmente charmoso e sensual, ele precisa dar vida a um homem não muito charmoso – ainda que se vista maravilhosamente bem – e que exiba fragilidade e virilidade em sintonia perceptível. Só não é um desafio maior do que dar viço ao caos emocional de Brandon ou despir-se por completo em frente a câmeras curiosas de sua intimidade física.
É, enfim, um trabalho robusto que destaca-se pela ousadia, coragem e capacidade de prospecção.
Shame, em última instância, é um filme que busca provocar no público uma reflexão mais ampla do que a mera discussão em torno de como o sexo é percebido moral e socialmente em nosso tempo. Justamente por isso, o filme se nega a desvendar o passado potencialmente traumático dos dois personagens centrais e teorizar sobre seus efeitos no presente deles. Essa ruptura com o modus operandi vigente na dramaturgia em geral, demonstra que McQueen está plenamente consciente dos efeitos de seu filme. Passa por essa condição, a opção de não oferecer a sua audiência um desfecho convencional.

10 comentários:

  1. Eu confesso ser essa a melhor resenha sobre esse filme que eu li até o momento e, provavelmente, a que mais me motivou a ver o filme.

    Dá uma passada no meu blog. ;)

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  2. SHAME estava esperando o olhar crítico, articulado, inteligente e culto do editor do blog. Parabéns mais uma vez meu caro! Usou lindamente as palavras.

    De fato McQueen não faz um filme sensual, erótico. É muita solidão, um abismo ao vicío. Em outras palavras, é um filme reflexivo e tenso, sombrio. Fass e Carey magistralmente em seus personagens.

    Vou ver novamente se bobear, amanhã (e no cinema).

    Abraço.

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  3. Está na minha lista, essa semana está difícil ir ao cinema, mas verei o mais breve possível. Seu texto me instigou ainda mais.

    bjs

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  4. Oi Reinaldo,
    Tudo bem?
    Que resenha magistral! Tão maravilhosa e lúcida nas articulações, que dá vontade de assistir mais uma vez ao filme e pensar sobre seu texto.

    Sempre inteligente, sensível e perspicaz em suas palavras. Parabéns!

    Você me envolveu com seu texto em mais uma afirmação de que Shame exorciza os demônios da pós modernidade, impregnada de solidão e frustração.
    Embora já ache Fassbender sexy e erótico por natureza, hehe, confesso que o filme me deixou muito pra baixo, é um retrato das sombras deprimentes que existem na vida de Brandon.

    Beijos,

    MaDame

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  5. Eu estou muito curiosa em relação à “Shame”. De tudo que eu li em relação ao filme, tenho a impressão de que se trata de uma obra diferente, sem vulgaridade, interessada na psiquê de seus personagens. Quero muito poder ter a chance de conferir uma história dessa na grande tela, mas acho que será o tipo de filme difícil de estrear por aqui (na minha cidade, digo! rsrs). O Fassbender teve um grande ano, em 2011, e a Carey Mulligan, que tem uma aparência tão meiga e frágil, parece estar num personagem completamente diferente de tudo que já fez, até agora. Curiosidade a mil para “Shame”.

    Beijos!

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  6. Pela resenha, me pareceu um filme interessantíssimo e até mesmo perturbador. A vontade de assistir o filme só aumentou. Apenas fiquei com uma curiosidade, como o diretor trabalha a trilha sonora?
    Como não está passando em nenhuma das salas da cidade, o jeito é o providencial download.

    Beijos!

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  7. Luís: Grande Luís! Dei uma passada lá no seu blog já. E agradeço pela deferência e elogio.
    Abs

    Rodrigo Mendes: Poxa, obrigado meu caro. It means a lot! (To quase até te mandando um beijo...rsrs)

    Amanda: É dos filmes mais significativos dos últimos anos Amanda.
    Bjs

    Madame Lumière: Não preciso nem mencionar o prazer que é vê-la comentando novamente em Claquete, não é mesmo Madame?! Obrigado pelos efusivos elogios. Shame é, de fato, um filme que nos induz a certa depressão. É um filme que provoca sensações reversas - o que só reforça o talento de McQueen.
    Bjs

    Kamila: É um belo filme Ka. Goste-se ou não se suas orientações estéticas e narrativas, o debate que enseja é indesviável.
    Bjs

    Patrícia Stroher: rsrs. Entendo sua agonia. Eu mesmo estava ávido pelo filme desde que integrou a seleção do último festival de Veneza. Obrigado pelo elogio. Shame é um filme interessantíssimo mesmo. É perturbador, provocante e altamente snesorial, sem deixar de ser também um indutor à reflexão.
    Gostei da sua pergunta. McQueen utiliza a música como um elemento de desestabilização. Geralmente incisiva é através dela que entramos em contato com as emoções de Brandon. Acordes agudos nos revelam a tensão tão bem trabalhada na face de Fassbender e aind atem a cena em que Carey Mulligan canta New York, New York. Momento de extrema ternura e profundidade.
    Bjs

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  8. "Tudo depende de gosto e sintonia, não é? Achei o filme muito bom, mas devo assumir que entrar em equilíbrio com o ritmo tão pesado me tomou quase metade dele. No campo do simbolismo, a atmosfera parada é bem encaixada e digna de aplausos. Porém, numa interpretação mais livre [...]"

    http://www.beepbopboom.com.br/2012/03/shame.html

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  9. Reinaldo, tua critica ficou muito boa. Shame é um filme que rende boas interpretações. Brandon tem todo um modo operandis de um viciado e o orgasmo, o prazer é seu verdadeiro vicio. Tanto q qd a sensação passa, a depressão chega. Quero rever esse logo tb. Abs!

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  10. Celo Silva:Obrigado meu caro. Esse filme vale muitas revisões.
    Abs

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