terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Crítica - Trapaça

A arte da sobrevivência é uma história sem fim

Trapaça (American Hustle, EUA 2013) é um filme sobre vigaristas. Sobre os anos 70. Sobre ambição e sobre àquela necessidade que bate nossa porta de quando em quando de reinventarmo-nos por completo. É, também, um filme de David O. Russell e esse último aspecto vêm ganhando cada vez mais relevância no cinema atual.
Indicado a dez Oscars (filme, direção, ator, atriz, ator coadjuvante, atriz coadjuvante, roteiro original, figurino, direção de arte e montagem), Trapaça é um filme que se escora, com consciência absurda, em seus personagens. E eles são todos fascinantes. Desde aquele que parece confinado ao status de apêndice narrativo (como o chefe do FBI vivido por Louis C.K) até o protagonista Irving Rosenfeld (Christian Bale).
Os anos 70 de figurinos exagerados e boa música surgem na paleta de Russell como uma época de desencanto em que o sonho americano em si precisava ser reinventado. Entornar neste caldo corrupção política, máfia e a mais fina malandragem apenas demonstra a expertise de Russell como narrador.
Irving é do tipo que se garante pela lábia. Ele se apaixona por Sidney Prosser (Amy Adams) tão logo nela repara e descobre que gostam exatamente da mesma música. Esse elemento que une os personagens é um dos muitos em que Trapaça excederá as expectativas do público e se comunicará com ele em outro nível. Outro desses momentos é quando Jennifer Lawrence, na pele de Rosalyn – a esposa de Irving que lhe nega o divórcio – canta "Live and let die" enquanto faxina.
Fossem as grandes cenas, Trapaça já valeria o ingresso, mas o filme mostra também que Russell não só é um sofisticado diretor de atores, como um lapidador de personagens raro no cinema atual.
Sidney e Irving se amam e se jogam no esquema de ludibriar os outros até que são pilhados em flagrante pelo agente do FBI Richie DiMaso (Bradley Cooper), que os convence a colaborar em uma investigação para que ele prenda peixes graúdos. Acontece que DiMaso vai gostando dessa vida de malandragem e começa a enxergar a beleza de  conseguir peixes ainda mais graúdos. A necessidade de reinventar-se, advoga Russell por meio de seus personagens, é um fluxo constante e horizontal.
Enquanto a ganância de DiMaso se multiplica, Irving à medida que prepara o bote para puxar o tapete de um punhado de políticos, entre eles o populista prefeito vivido por Jeremy Renner – a quem se afeiçoa, começa a sentir o peso de suas inconsequentes atitudes. Essa tomada de consciência do personagem, nunca absoluta, afinal, Irving se ressente de adentrar as hostes da máfia e flertar com a possibilidade real de morte, é a linha mestra da dança de gêneros pela qual Russell conduz sua audiência.
Da comédia de erros à sátira, passando pelo thriller e pelo drama mais rebuscado, Trapaça é um cinema tão redondo quanto o talento de seu realizador pode ofertar.
Não há crítica social ou o desejo de radiografar algum tema relevante do presente, Trapaça é entretenimento adulto na sua mais fina concepção. É, também, um tributo ao cinema de Scorsese, em os que personagens precisam se encontrar no imenso tamanho de suas ambições.
Os anos 70 surgem saudosos, românticos e mais coloridos do que talvez tenham sido no filme de Russell que coloca os personagens no comando do show. Jennifer Lawrence brilha como a bipolar e manipuladora Rosalyn. É uma das grandes personagens femininas dos últimos tempos e Lawrence tem o talento necessário para fazer jus a ela. Christian Bale tem a melhor atuação de sua carreira na pele de Irving. O ator precisa ir do dramático ao cômico e o faz com uma organicidade espantosa. Sem perder o cinismo e o charme de vista. Em um olhar ele exprime tudo o que o personagem precisa exprimir. Bradley Cooper é outro ponto nevrálgico do elenco. Além da urgência de sua composição, Di Maso é esperto, mas não raciocina como deveria, Cooper sabe revelar a fragilidade de seu personagem no timing preciso. Mas o grande nome de Trapaça é mesmo Amy Adams. Ela é o coração do filme. É através de sua Sidney, que na maior parte do filme é Edith, que Trapaça viabiliza sua razão de ser: de que essas segunda, terceira, quarta chances dependem rigorosamente de nós. Adams está sensual como nunca, sutil como sempre, mais expansiva do que de hábito e arrebatadora como Trapaça precisa que ela seja. Se há um porém no elenco, é Jeremy Renner, que apesar de bem intencionado, não convence como italiano do povo.

É preciso dizer que Trapaça, sem seu elenco, não seria metade do filme que é e é aí que a grandeza de Russell se revela. Ele sabe disso e não faz a menor questão de esconder.  

6 comentários:

  1. Eu já gostei muito da atuação de Renner. kkkk De resto concordo em gênero, número e grau. Vi muitas opiniões colocando Trapaça como um filme mediano, que já estava até na dúvida se só eu tinha me empolgado tanto com o filme. É um filme de grandes atores, e de uma trama deliciosa. Eu acho que muita gente queria ver um grande golpe, um grande roubo, mas na verdade eles estavam lutando por suas vidas. Essa é a grande sacada.

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  2. O que me incomodou um pouco no filme foi a edição. Muito frenética em certos momentos, impediu um envolvimento maior com algumas cenas.

    Bradley Cooper me incomodou um pouco também, acho que as vezes ele exagera, deixa a interpretação caricata. Essa também foi a minha impressão em "O Lado Bom da Vida". Cooper ainda não me convenceu, apesar das indicações ao Oscar. Bale, Amy e Jennifer estão perfeitos.

    O filme conseguiu basicamente as mesmas indicações ao Oscar que "O Lado Bom da Vida" teve no ano passado. Levou vantagem por ser um filme de época e só por isso abocanhou mais 2 categorias (direção de arte e figurino).

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  3. Um dos textos mais positivos que li sobre "Trapaça". Ainda tenho que assistir a este novo filme do David O. Russell.

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  4. ThiCarvalho: Grande ThiCarvalho. Sacou o filme direitinho! Que bom que estamos afinados na recepção a este belo trabalho de Russell.
    abs

    Anônimo: Eu gostei do trabalho de edição. De qualquer forma, está neste frenesi o grande tributo ao cinema de Scorsese. Esse nervosismo na edição é o que assemelha esse filme de "Os bons companheiros"por exemplo. Cooper beija a caricatura aqui sim, mas penso que é um movimento consciente. Ele está bem, mas é o fraco - se podemos dizer assim - dos quatro atores. Em O lado bom da vida, não. Lá, na minha avaliação, ele está irretocável.
    Abs

    Kamila: Espero que vc goste!
    bjs

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  5. Que lega! Senti seu entusiasmo nessa crítica, o que me motivou mais a assistir ao filme.
    Penso que todos nós temos uma necessidade de reinventa-mos e a malandragem é atrativa, deixar de ser certinho...rsrs
    Beijo
    Madame

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  6. Cristiane: É esse o espírito Cris. Um filmaço a seu modo e com grande carinho pelos personagens.
    Bjs

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