Foi com Robert Altman que um estilo muito particular de cinema ganhou vez. O filme coral. Patenteado por Altman, esse estilo se consagrou em Short cuts-cenas da vida (Short cuts, EUA 1993), filme que entre outros prêmios levou o Leão de ouro e a copa Volpi de melhor atuação para todo o elenco – feito ainda único em toda a história do mais antigo festival de cinema do mundo. O prêmio em Veneza, a lembrança no Oscar, a multipremiação no Independent Spirit Awards ajudaram a delimitar algo que hoje, quase cinco anos após o falecimento de Altman, parece inescapável: a incrível habilidade narrativa do diretor. Tanto para o desvelo de história paralelas que aparentemente não mantém nenhuma relação, como que para conferir-lhes unidade e densidade.
Em Short cuts testemunhamos um punhado de personagens às voltas com suas rotinas. Não há grandes conflitos nas quase três horas de filme e lapidar o interesse da audiência seria um desafio; mas Altman faz da contraposição entre as personalidades dos personagens e suas idiossincrasias, um genuíno estudo antropológico.
Há o ex-marido e a ex-mulher que digladiam-se sem se importar com o filho menor; o casal em que a mulher é operadora do disque sexo e fala sacanagens enquanto troca fraldas e o marido limpa piscinas; há o casal em crise afetiva em que o marido, um policial, só recobra o desejo pela mulher após saber que ela pousou para um nu artístico; há o grupo de amigos que em um fim de semana de pesca descobriu um cadáver e esperou o fim de semana terminar para reportar a polícia, há o casal formado pelo médico conservador e a artista liberal...
Julianne Moore surge nua em Short Cuts para o voyeurismo do espectador
Esses e outros personagens vão se cruzando à medida que a trama avança. Tudo com uma fluidez insuspeita. Os vestígios da existência, parece dizer Altman, não trazem nada de especial. Nenhum firmamento. O diretor observa seus personagens com um comportamento até mesmo impassível. Não reage à suas comiserações, apenas transmite-as à audiência com desapego. Paul Tomas Anderson que logo se inseriu como discípulo de Altman, ajudando inclusive na finalização de seu derradeiro trabalho, não se conteve na concepção psicológica de seus personagens em obras como Magnólia e Boogie Nights – prazer sem limites. Aqui Altman pinta o retrato, não teoriza sobre suas cores.
É lógico que as assunções são permitidas e toda a loucura da existência e das relações interpessoais são concatenáveis com o que se vê na tela. Altman provê cenas curiosas do cotidiano desses personagens como em uma antecipação voyeurística de um movimento que ganharia força no alvorecer do século XXI. Observar a intimidade de terceiros tem seu fascínio e talvez seja essa a grande abstração desse filme. Altman, na medida em que cresce o olhar sobre seus personagens, tira o peso desse jogo voyeur que estabelece com a platéia. Aferindo banalidades, choques e interiorizações sem grandes aforismos a sua mise-en-scène, Altman delibera que somos todos mortais na busca pela imortalidade. Um grande filme!
Apesar de ser um marco da filmografia do Robert Altman, nunca assisti a este filme. Um erro que preciso reparar em breve!
ResponderExcluirVc vai gostar Ka. É um filme muito interessante.
ResponderExcluirbjs
É, também nunca conferi esse; Porque não temos mais horas nos nossos dias? hehe.
ResponderExcluirbjs
Não sou fã do Altman, mas adoro como ele sabe lidar com as diversas histórias desse filme. Nem a longa duração atrapalha.
ResponderExcluirAmanda: rsrs. Por que, né? rsrs
ResponderExcluirbjs
Matheus: Concordo contigo.
Abs
olá reinaldo, gostei muito do teu artigo. estou escrevendo minha dissertação pra mestrado e gostaria de trazer essa ideia de filme coral. vi várias coisas soltas pela internet, mas não consegui identificar quem criou este termo, quais as referências inicias. vc sabe? obrigada. abs
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