Há Pedro Almodóvar e há os outros. Ao longo dos anos,
crítica e cinéfilos exaltaram o olhar exercitado pelo cineasta espanhol para as
coisas do feminino. A alma da mulher é compreendida em toda a sua paradoxalidade e
complexidade pelo cinema de Almodóvar, diz o senso comum produzido na roda
cinéfila. Há quem credite esse atributo invejável à homossexualidade do
diretor. É uma tese discutível, mas amplamente aceita. O próprio Almodóvar em
diferentes entrevistas, para veículos de diferentes países, estabeleceu uma
lógica de morde e assopra. Ora dando vazão à teoria, ora rejeitando-a
veementemente.
Mas Almodóvar é, ainda que com esses paroxismos, um
consenso. O ano de 2013, no entanto, inseriu um novo componente nesse debate.
Como já é notório, o vencedor da Palma de Ouro em Cannes Azul é a cor
mais quente (nome nacional da fita escolhido por leitores do AdoroCinema em
promoção realizada em parceria com a distribuidora do filme no Brasil),
apresenta um romance lésbico com cenas bastante gráficas.
O filme do franco tunisiano Abdellatif Kechiche foi
desautorizado pela autora da HQ na qual o filme se baseia. Para a francesa
Julie Maroh, Azul é a cor mais quente só atrai interesse para si pelas
comentadas cenas de sexo. “Tirem o sexo e ninguém irá querer ver o filme”,
bradou. A autora criticou Kechiche que, segundo ela, a teria deixado de fora do
processo criativo do longa-metragem. Maroh diz, ainda, que Kechiche filma o
romance lésbico com fetichismo, como um voyeur, com pegada heterossexual e não
mimetiza em celuloide o sentimento e a visão que ela tangencia, ou quis
tangenciar, na obra original. Depois do pronunciamento de Maroh, as atrizes Léa
Seydoux e Adèle Exarchopoulos se manifestaram na mídia insinuando que teriam
sido manipuladas por Kechiche na feitura do filme. O cineasta, então, rompeu o
silêncio e disse que o filme então não deveria ser visto. Depois voltou atrás.
Almodóvar e uma de suas musas, Penélope Cruz, em fotografia da Vanity fair...
... e Kechiche com suas atrizes exibindo o certificado e Palma de ouro conquistados neste ano
A polêmica em torno de Azul é a cor mais quente faz mais do
que por em lados opostos feministas e diretores homens. Stanley Kubrick
realizou um bom ensaio sobre sexualidade, e por consequência sobre sexualidade
feminina, em De olhos bem fechados. Stephen Daldry, que também gay, fez o
excelente As horas, que aborda o universo feminino, e aí obviamente inclusa a
sexualidade, com destreza até hoje inigualável. Woody Allen também construiu
personagens femininas muito fortes, muito tridimensionais, a Jasmine – do novo
Blue Jasmine – honra essa tradição. E feminista que se preze tem
ojeriza a Woody Allen.
O novo filme de François Ozon, que também é gay, Jovem e
bela, também exibido em Cannes, provocou ira nas feministas. No filme, uma
jovem endinheirada resolve se prostituir para viver essa experiência. As
feministas acusam Ozon de fetichista, no que o autor se exime por bradar “sou
gay” e estar interessado na descoberta da sexualidade pela mulher em tempos
muito mais cínicos e permissivos. Há mais de 40 anos, o espanhol Luis Buñuel
apresentou proposta similar em A bela da tarde (1967), em que a infeliz esposa,
jovem e rica, vivida por Catherine Deneuve resolve se prostituir às tardes
enquanto o marido médico trabalha.
Entre fetiche, curiosidade e sensibilidade, a sexualidade
feminina parece interessar mais aos cineastas homens do que às mulheres. Salvo
Jane Campion, Sarah Polley e circunstancialmente uma ou outra diretora, o
cinema carece desse olhar que muito acrescentaria a muito mais plural, complexa
e apaixonante sexualidade feminina.
As atrizes de As horas, filme que investiga a fundo o feminino...
... e Marine Vacth em cena de Jovem e bela, o filme de Ozon que provocou a ira das feministas
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