Ambição e diapasão
Que o cinema pernambucano é o principal cartão postal do
cinema brasileiro já se sabe, mas é interessante observar a unidade estética e
narrativa que essa nova geração de cineastas do Estado apresentam. Boa sorte,
meu amor, filme que marca a estreia de Daniel Aragão como cineasta, dialoga
intimamente com O som ao redor. Não só por emprestar deste uma atriz
emblemática (Maeve Jinkings), mas por ter na complexa e delicada relação entre
classes sociais tensionadas em
uma Recife desproporcional, o eixo central de sua
dramaturgia. Aragão que foi produtor de elenco do filme de Kleber Mendonça
Filho apresenta um filme mais senhor de suas complexidades e fidedigno aos
personagens que retrata. Nesse sentido, agiganta-se. Ainda que não se compare à
ambição temática, no tocante à pluralidade com que tangencia a tensão entre
diferentes classes sociais, de O som ao redor.
Em Boa sorte, meu amor, Aragão mostra a história de amor de
Maria (Christiana Ubach) e Dirceu (Vinicius Zinn). Ela pobre, migrante de uma
cidadezinha interiorana castigada pela seca e miséria. Ele, de classe média
alta e naquela fase de choque com seu pai. A aproximação e subsequente
distanciamento entre os dois é o fio condutor de uma história que ambiciona
exibir as contradições e tensões entre as classes sociais e as cicatrizes que o
crescimento econômico deixa nessas relações (sociais, amorosas e/ou
pessoais). É, enfim, um cinema de signos sobre símbolos.
Aragão abre seu filme com Dirceu, entre sombras, ouvindo uma
história de seu pai. Eles estão sentados à mesa, aquela larga de madeira que
não se vê mais hoje em dia, em lados opostos. A câmara se aproxima do rosto do
pai de Dirceu à medida que ele se aproxima do clímax de sua história. Um conto
que começa com os barões estuprando as indiazinhas de 11 anos e, como método
contraceptivo, as enforcando em seguida e termina com uma dessas indiazinhas
deitando-se à cama oficial do tetravô de Dirceu. Nesse poderoso prólogo, que
integra o primeiro dos três capítulos que constituem o filme, nomeado “Você é o
que você perde”, o filme já capitaliza toda a sua força. Se fosse um
curta-metragem, seria um curta-metragem esplêndido em técnica e narrativa.
O rigor técnico a serviço de uma narrativa que busca
iluminar conflitos adormecidos ou sombreados, aliás, é outra forte referência
do filme.
O seu grande atrativo é, também, seu calcanhar de Aquiles
enquanto cinema. Tal qual O som ao redor, Boa sorte, meu amor é um filme para
críticos. Não que o público comum não seja capaz de capturar a essência do que
ambiciona Aragão com seu filme, mas essa absorção jamais será completa. Essa
vaidade do “eu sei fazer cinema” talvez esteja relacionada a uma fase de
afirmação desses cineastas de inegável talento e com muito a dizer. Boa sorte,
meu amor, de certa maneira, já é mais coeso narrativamente do que o era O som
ao redor, para nos atermos à comparação motriz dessa crítica.
Nesse jogo de ambição e diapasão, o cinema brasileiro sai
ganhando; ainda que seu público não perceba de pronto.
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