Lars Von Trier orienta Willem Dafoe e Charlotte Gainsbourg no set de AntiCristo: atores que encontram na fisicalidade a força de suas performances
O Oscar deste ano foi eloquente em destacar performances que
encontraram na fisicalidade sua matéria prima. Joaquin Phoenix em O mestre é um
exemplo perfeito. É por meio de seu corpo, frequentemente turvo, de sua postura
rebelde, sua aparência mal adornada e seu gestual agonizante que muito da
vulnerabilidade de seu personagem, um tipo passivo agressivo, se revela ao
expectador. No filme de Paul Thomas Anderson, Phoenix vive um homem com uma
mente frágil. Não é certo se essa condição é consequência de sua atuação na
segunda guerra mundial ou uma herança genética – já que sua mãe é diagnosticada
como louca. Phoenix investe na abordagem física em uma composição que
privilegia seu corpo como seu texto. É através dele que sua atuação fala.
Ainda que com aspectos distintos, é mais ou menos o mesmo
que se verifica no Lincoln de Daniel Day Lewis. Ator conhecido por seu método
peculiar de atuar, Day Lewis investe em uma caracterização consistente com a
memória que se tem de Lincoln. O ator estudou desde o sotaque da região em que Lincoln cresceu
até a postura que ele mantinha em reuniões de gabinete. Como são poucos os
registros formais de Lincoln e sua época, Day Lewis tinha significativo espaço
para criar. Sua autoridade como intérprete, aliada à conveniência da maquiagem,
favorecem uma composição que encontrou críticas elogiosas. O New York Times
saiu-se com a seguinte: “Daniel Day Lewis é mais Lincoln do que Lincoln”.
Filmado por Spielberg sempre de um ângulo inferior, Day Lewis – que já é alto –
surge imponente. Mas escolhe uma postura curva – talvez para sinalizar o peso
sobre as costas do homem – como um recurso tão eloquente quanto seu olhar
penetrante.
Bradley Cooper, por O lado bom da vida, apresenta a atuação
mais minimalista entre as indicadas. Mas não deixa de conter elementos textuais
interessantes. Sempre inquieto, como se seu corpo emitisse eletricidade,
providencialmente menos bonito do que geralmente aparece, Cooper investe em uma
composição que congrega a fragilidade do seu personagem – um bipolar que ainda
não sabe exatamente como reagir a esse diagnóstico – e sua indevassável vontade
de viver a felicidade. Sua companheira de cena, Jennifer Lawrence é ainda mais
feliz no uso que faz de seu corpo. Não só pelo olhar de David O. Russell ser
generoso com sua sensualidade incontida, mas por saber se insinuar para a
câmera com um misto de angústia e indiferença. As variações de humor de sua
personagem são sempre muito bem expressas por seu gestual expansivo e seus
olhares miméticos. Emmanuelle Riva, que também concorreu ao Oscar, tem no corpo
o eixo central de sua atuação. Vivendo uma idosa vítima de um AVC com os
movimentos do corpo cada vez mais restritos, Riva encontra expressividade na
contenção e faz de seu corpo o vaso para uma atuação basicamente artesanal.
Hugh Jackman em cena de Os miseráveis: seu corpo é um elemento tão importante para sua atuação quanto a sua voz...
Daniel Day Lewis é um ator que valoriza a expressão corporal na composição de suas atuações
Em outra frente, Hugh Jackman e Anne Hathaway em Os
miseráveis submeteram seus corpos a intervenções da realização que modificam
por completo a percepção de seus trabalhos. Jackman, por exemplo, teve de
emagrecer para depois engordar para o papel, raspar a cabeça e cantar a plenos
pulmões enquanto fazia força. Hathaway também teve de perder peso e raspar a
cabeça – algo sempre mais dramático para uma mulher. A opção de Hooper por
colar a câmera no rosto de seus intérpretes faz com que o corpo do ator seja
também texto do diretor e não mais apenas do ator. Há cineastas que gostam de
falar por meio do corpo de seus atores. Darren Aronosfky recuperou seu status
no cinema americano ao explorar cada poro de Mickey Rourke em O lutador, filme
sobre um ex-lutador de wrestling longe de seus dias de glória. A experiência se
mostrou frutífera. Em seu filme seguinte, Cisne negro, ele explorou a
fragilidade física da bailarina vivida por Natalie Portman. Nunca uma
performance no cinema conectou tanto o físico no emocional.
Steve McQueen tem no corpo de Michael Fassbender a sua pena.
Em filmes como Hunger e Shame ele expõe o corpo de Fassbender como recurso
narrativo ímpar na construção que faz dos personagens (um homem em greve de
fome, no primeiro, e um viciado em sexo, no segundo) e de seus dramas. A
diferença entre os trabalhos verificados no Oscar deste ano e esses dirigidos
por Hooper, Aronofsky e McQueen é que nos últimos há uma apropriação pelos
diretores dos corpos dos atores enquanto que nos primeiros são os atores que
usam os próprios corpos como discurso. É uma equação interessante. Verifica-se,
portanto, que o corpo do ator pode servir a dois tipos de discurso distintos em
um mesmo filme. Sem a presença tergiversada de Phoenix em O mestre, Paul Thomas
Anderson jamais conseguiria dar conta da complexidade de suas proposições no
filme e, ao mesmo tempo, em suas sutilezas, Phoenix reafirma-se como intérprete
imaginativo e cria um personagem que desperta curiosidade e não necessariamente
empatia. Se causasse empatia, Phoenix teria falhado como ator. Em Shame, por
exemplo, a preocupação de Fassbender é inversa. Enquanto deixa o olhar de
McQueen devassar seu corpo, o ator se preocupa em preencher emocionalmente um
personagem vago na concepção estética da realização. Confirmando a
bidimensionalidade do corpo do ator enquanto texto.
Reinaldo, adorei o texto.
ResponderExcluirSempre achei que o corpo do ator deve pertencer ao diretor durante uma produção. É elemento indiscutivelmente complementar e pode construir, em meio aos outros elementos, a arquitetura estética e emocional de uma obra. Acho que o trabalho do ator nas telas pode ser comparado ao bailarino no palco. Todas as sutilezas importam.
Um outro ótimo exemplo é Christian Bale em O Operário. É inquietante.
Ótimo texto, Reinaldo. Bela análise.
ResponderExcluirbjs
Reinaldo, dessa vez não posso deixar de comentar: é teu melhor texto em tempos. Discordo em um ou outro ponto mas, no geral, tenho que admitir: trata-se de um execelente ensaio.
ResponderExcluirNossa, Reinaldo, gostei muito desse recorte! Parabéns pela ótima análise.
ResponderExcluirPatrícia: Obrigado pelo valoroso feedback. É verdade, Bale em "O operário" é coisa de outro mundo...
ResponderExcluirbjs
Amanda: Obrigado Amanda. Feliz que tenha gostado.
bjs
Cássio: Valeu meu garoto! Modéstia à parte, tb achei que ficou um ensaio bem bom! rsrs
Valeu pelo elogio!
Abs
Aline: Muito obrigado mesmo pelo feedback Aline.
bjs