Arquidiocese do desejo
O desprezo de Lars Von Trier pelo público ganha novos
contornos com o lançamento de Ninfomaníaca –volume 1 (Nymphomaniac: volume I,
FRA/DIN/ALE 2013) que suscita recepção mista por ser um filme frustrante
naquilo que promete: sexo. O interesse de Von Trier, a despeito de suas
primeiras e ambíguas manifestações a respeito do projeto, não era fazer um
filme pensativo a respeito do cinema pornô, de suas fronteiras com a arte e a
representação do prazer. Esses são apenas interesses circunstanciais a gravitar
uma pauta muito mais absoluta, complexa e indelével. Nossa relação com o sexo.
A moral dela. As bifurcações entre desejo e culpa. A mitigação da
identidade entre como nos percebemos e como os outros nos percebem. Como
afetamos aqueles que passam por nossas vidas e como o sexo pode rapidamente se
transformar em elemento de afirmação ou negação.
Esse interesse psicanalítico sempre pautou o cinema de Von
Trier e é com algum espanto que deve se receber, pelo menos por parte da
crítica especializada, a reação negativa ao filme. Do público leigo, instado
pelo marketing agressivo que antecedeu o lançamento do filme, reação adversa ao
filme lento, introspectivo e cheio de pequenas sodomias por parte da realização
era esperada.
Se há um traço negativo neste primeiro volume de
Ninfomaníaca é a opção de Von Trier em concentrar-se menos em Joe, essa
personagem com nojo e raiva de si mesma, e mais nas construções arquetípicas
que articula para dar vazão ao seu raciocínio. O que induz o entendimento de
que o cineasta deve inverter esse prisma no segundo volume. Joe (uma pouco
essencial Charlotte Gainsbourg) aqui funciona mais como um mcguffin, para
cunhar o termo hitchcockiano que remete ao elemento detonador de uma trama e
não necessariamente ao fio condutor dessa mesma trama, do que como uma
personagem. As analogias entre cultura erudita, seja a música ou a literatura,
e simplicidades como o jeito de cortar as unhas ou a pescaria, e o sexo
contribuem para a ineficácia do erotismo pretendida pelo dinamarquês. O diretor
não quer excitar, quer que reflitamos sobre a banalidade oculta na complexidade
do tema que apresenta.
O perto e branco iconoclástico de "Delírios", o quarto capítulo de Ninfomaníaca: vertente freudiana a serviço de uma narrativa que sabe precisamente onde vai chegar
A criatividade insuspeita de Von Trier na emulação de uma teoria cativante, mas que se provaria falha mais adiante, no quinto e derradeiro capítulo denominado "A pequena escola de órgão"
O terceiro capítulo, denominado "Sra. H", é uma representação
tensa e monocromática do rompimento no seio familiar em virtude do sexo fora do
casamento. A situação ganha em absurdo porque o marido da Sra. H parece cego à total falta de interesse de Joe nele. Assim como Joe
parece evitar o pensamento de que age com crueldade nefasta ao brincar com os
sentimentos alheios e é aí, justamente, que o público se depara com a abismal
diferença entre a Joe machucada e com pena de si mesma, que narra sua história
a Seligman (Stellan Skarsgard) e a Joe (Stacy Martin) que como um animal em
agonia vai sangrando seu sexo a rodo. Essa diferença é responsável pelo
sentimento de incompletude que toma o filme em seu ato final, que na verdade
não corresponde ao fim de maneira alguma. Na última cena, algo que apenas havia
ficado sugerido no segundo capítulo ("Jerôme"), ganha contornos de descoberta
arrasadora. O gosto pela humilhação é uma das poucas respostas sexuais de Joe,
no que um exercício de especulação possa remeter a sua primeira experiência
sexual com Jerôme. Essa divagação, no entanto, fica para o segundo volume.
Ninfomaníaca é uma ode a manipulação desde seu primeiro
momento. Von Trier abafa o som e mantém a tela escura brincando com a ansiedade
elevada de sua audiência. Os pingos da chuva no telhado, em latas e finalmente
no chão são pequenas demonstrações de que é ele, o cineasta, quem dita o ritmo
dessa história de compulsão sexual gráfica, irrigada de analogismos e urdida à
pscinálise. Ao público, resta frustrar-se; como geralmente o sexo é, provoca
Von Trier.
Como você disse, você se empolgou mais do que eu, rs. Mas, gostei muito de sua análise. Realmente é um filme que brinca com expectativas e nos joga pontos de vistas bem instigantes. Eu, porém, continuo esperando a parte dois para fazer um juízo maior, talvez até passe a gostar mais ou não, quem sabe...
ResponderExcluirbjs
A sua primeira frase resume bem o meu pensamento sobre Von Trier. Um cara que despreza o espectador, e acho vc utilizou muito bem essa palavra. Na minha opinião, um filme que só ganhou esse status em função das sua abordagem sexual. Desnecessária, diga-se de passagem, na minha opinião. Abs.
ResponderExcluir"Ninfomaníaca" - Parte 1 ainda não estreou na minha cidade, acho que isso deve ocorrer em Fevereiro, por isso estou evitando ler o máximo possível sobre o filme, pois quero me surpreender. Mas, acredito, pelo menos essa é a sensação que eu tenho, acho que o objetivo de Lars Von Trier com esse longa foi nos mostrar o sexo como um ato mecânico, sem envolvimento de sentimento, com todo o excesso que é mostrado no filme.
ResponderExcluirÉ incrível a dificuldade de se comunicar, não? A protagonista do filme tenta falar sobre sexo, instinto, ética, "insensibilidade pelos outros seres humanos". Mas o homem que a ouve só consegue entender com matemática, racionalidade, conflitos políticos... É O MESMO CASO DESTA CRÍTICA. De que adianta ao Lars fazer um filme até didático, copiando várias cenas de "Solaris" e, em especial, de "O Espelho" do Tarkovsky (dos pingos da chuva no telhado, a abertura da parte sobre o pescador, a observação da árvore na floresta, a explicação da música de Bach) se o CRÍTICO de cinema não consegue ver as relações??? Ok, Lars já deu entrevistas falando de Tarkvosky. Até dedicou um filme ("Anticristo") ao Tarkovsky. Também já falou várias vezes que está interessado tanto em dialogar com outros cineastas quanto em abordar a dinâmica eu-outro como relação de violência. Ele diz isso nas entrevistas e depois isso aparece explícito nos filmes, desde Ondas do Destino... Joe e Seligman são apenas uma nova versão de Grace e Tom de Dogville, ou do marido e da mulher em Anticristo, ou das duas irmãs em Melancolia... Não adianta - mesmo que existam vários aspectos subjetivos (que poderiam levantar discussões e discordâncias) - os críticos não avançam. Só sabem rotular Lars como "alguém que despreza o homem", "marqueteiro", "manipulador"... Mesmo quando o FILME tenta falar de algo mais, o crítico só projeta (no filme dos outros) a sua raiva, a sua paixão, a sua insatisfação, seu repertório de clichês (como o termo "mcguffin" - que era ótimo na entrevista Hitchcock/Truffaut, mas aqui vira um meio de "manipular" o filme do Lars). Não existe a verdade de cada filme, não existe a interpretação única. Cada um vê o que quer. Mas dizer que "a piscina é rasa" quando, na verdade, não se sabe nadar nela é outra história.
ResponderExcluirAmanda: Obrigado Amanda. De qualquer forma, concordamos que apenas o filme completo favorecerá uma análise mais encorpada. De qualquer maneira, já está provado que as provocações e a inversão de expectativas nortearão tal experiência.
ResponderExcluirbjs
ThiCarvalho: Obrigado pelo feedback Thi. Acho que a utilização do sexo é uma opção estética válida e esvaziá-lo de erotismo tem um valor narrativo inestimável no que propõe Von Trier.
abs
Kamila: A mecanicidade do sexo é um dos alvos de Von Trier, de fato, mas não ouso dizer que seja "apenas" isso. Somente neste primeiro filme ele mexe em outros vespeiros também...
Bjs
Carlos Eduardo Batalha: Acho que vc veio com "agenda pronta". Você não percebeu que a minha crítica é positiva em relação ao primeiro volume de "Ninfomaníaca". É engraçado porque um dos subjetivismos possíveis em Ninfomaníaca, pelo menos neste primeiro volume, é justamente essa da relação do crítico e do cineasta. Enquanto o cineasta trata de instinto, valores, emoções, o crítico "só ouve" matemática e razão, subtextos diversos e racionaliza um filme que, talvez, não busque essa racionalização.
Subjetivações à parte, concordo que Joe e Seligman são repetições, com os devidos ajustes, de outros personagens criados por Von Trier. O que é esperado, e nenhuma crítica precisa ressaltar, tendo em vista que o dinamarquês afirma que suas personagens femininas são decalques dele mesmo.
Von Trier é sim marqueteiro e extremamente arrogante. Gostar dele como artista não muda esse fato, mas tenho a humildade e discernimento de separar um aspecto do outro. Espero que você seja capaz de fazer o mesmo em relação a MINHA crítica. E não fazer uma postulação a respeito da crítica de cinema em geral a propósito da minha crítica que, caso não tenha notado, sutilmente aborda muitos pontos destacados por ti.
Espero que possa contar com sua audiência, e disposição ao debate, mais frequentemente.
Abs