Grito contra a grita!
Existe uma preocupação que norteia Tatuagem (Brasil 2013),
ousada e feliz estreia de Hilton Lacerda, habitual colaborador de Cláudio
Assis, na direção de longa-metragens.
Essa preocupação concerne em deixar claro para o espectador
que o Brasil pouco avançou em matéria de liberdades individuais desde que
voltou a ser uma democracia. É uma preocupação legítima e que permeia o filme
de maneira orgânica no desenho que Lacerda dá à trama.
Clécio (Irandhir Santos) é o diretor de uma trupe teatral de
ar revolucionário na Recife de 1978 que busca no drible à censura dos militares
a beleza de seu ofício. Clécio tem um filho e se dá bem com a ex-mulher, mas é
homem que gosta de homem e não se furta a fazer o que gosta. É um homem
inteligente, paciente e extremamente emocional. O ambiente em que vive é de
liberdade, mas há rachaduras. De certa maneira, a presença de Arlindo (Jesuíta
Barbosa), um militar que vai se encantando pelo padrão de vida daqueles
artistas escanteados pelos bons costumes, expõe essas rachaduras.
Arlindo vive em um quartel com visível desconforto, Lacerda
não se furta a dimensionar o forte apelo homoerótico daquele ambiente. Mas o
desconforto de Arlindo, chamado de fininha em parte por sua voz e em parte por
sua envergadura, não vem daí. É preciso conhecer a família de Arlindo, daquelas
tradicionais e aguerridas à religião, para discernir as raízes do desconforto
de Arlindo. Ele não demora em atender seu desejo por Clécio, não se trata de
alguém que não tinha conhecimento de suas pulsões sexuais, mas de alguém que vivia
de escondê-las e que uma vez no ambiente de Clécio, estimula-se a vivê-las por
inteiro.
Tatuagem é um filme que trata o desejo como válvula
desestabilizadora que ele é. Não raro os personagens se chocam, mas não há
qualquer tipo de recriminação. Há sim um discurso, por vezes ereto demais,
contra a incompreensão, o preconceito institucionalizado e a hipocrisia
generalizada que jazem no convívio social. Nesse contexto, um número do grupo
teatral de Clécio denominado "ode ao cú" é de uma eloquência ímpar. Ali é erguida
uma reflexão sobre liberdade como jamais foi feito no cinema e com uma estética
abusada, bem ao gosto do cinema pernambucano desafiador e incandescente que se
pratica atualmente.
Lacerda se volta contra alguns paradigmas que norteiam
alguns cânones do preconceito como o fato de crianças não poderem ser criadas
em um ambiente que fuja aos padrões morais da maioria. Essa agenda, é bem
verdade, enfraquece Tatuagem como cinema no mesmo compasso em que o habilita
como catarse de uma causa. Se não é tão intransigente como Assis, Lacerda peca
por ater-se demais a aspectos que não acrescem à narrativa.
As cenas de sexo entre Clécio e Arlindo, no entanto, não se
encaixam nesse excesso. Há um interesse temático de mostrar dois homens se
amando e as cenas, por mais fortes e gráficas que sejam, cumprem propósito
central da narrativa de entender a função do desejo e como ele vai
transformando aquelas figuras tão diferentes e, simultaneamente, se
transformando em algo diferente também; em amor. A tatuagem que dá nome ao filme finalmente
se justifica como catalisadora dessa transformação.
Os atores estão muito bem, desde Rodrigo Garcia como
Paulete, amor de ocasião de Clécio, até Jesuíta Barbosa que deve tomar o cinema
de assalto nos próximos meses. Seu desafio será eclipsar o talento colossal de
Irandhir Santos, ator que parece desconhecer limites e ser capaz de arrebatar
fazendo qualquer coisa. Ele é corpo e alma de Tatuagem, um filme que
sem seus atores pareceria mais um grito e menos arte.
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