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quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Crítica - Tatuagem

Grito contra a grita!

Existe uma preocupação que norteia Tatuagem (Brasil 2013), ousada e feliz estreia de Hilton Lacerda, habitual colaborador de Cláudio Assis, na direção de longa-metragens.
Essa preocupação concerne em deixar claro para o espectador que o Brasil pouco avançou em matéria de liberdades individuais desde que voltou a ser uma democracia. É uma preocupação legítima e que permeia o filme de maneira orgânica no desenho que Lacerda dá à trama.
Clécio (Irandhir Santos) é o diretor de uma trupe teatral de ar revolucionário na Recife de 1978 que busca no drible à censura dos militares a beleza de seu ofício. Clécio tem um filho e se dá bem com a ex-mulher, mas é homem que gosta de homem e não se furta a fazer o que gosta. É um homem inteligente, paciente e extremamente emocional. O ambiente em que vive é de liberdade, mas há rachaduras. De certa maneira, a presença de Arlindo (Jesuíta Barbosa), um militar que vai se encantando pelo padrão de vida daqueles artistas escanteados pelos bons costumes, expõe essas rachaduras.
Arlindo vive em um quartel com visível desconforto, Lacerda não se furta a dimensionar o forte apelo homoerótico daquele ambiente. Mas o desconforto de Arlindo, chamado de fininha em parte por sua voz e em parte por sua envergadura, não vem daí. É preciso conhecer a família de Arlindo, daquelas tradicionais e aguerridas à religião, para discernir as raízes do desconforto de Arlindo. Ele não demora em atender seu desejo por Clécio, não se trata de alguém que não tinha conhecimento de suas pulsões sexuais, mas de alguém  que vivia de escondê-las e que uma vez no ambiente de Clécio, estimula-se a vivê-las por inteiro.
Tatuagem é um filme que trata o desejo como válvula desestabilizadora que ele é. Não raro os personagens se chocam, mas não há qualquer tipo de recriminação. Há sim um discurso, por vezes ereto demais, contra a incompreensão, o preconceito institucionalizado e a hipocrisia generalizada que jazem no convívio social. Nesse contexto, um número do grupo teatral de Clécio denominado "ode ao cú" é de uma eloquência ímpar. Ali é erguida uma reflexão sobre liberdade como jamais foi feito no cinema e com uma estética abusada, bem ao gosto do cinema pernambucano desafiador e incandescente que se pratica atualmente.
Lacerda se volta contra alguns paradigmas que norteiam alguns cânones do preconceito como o fato de crianças não poderem ser criadas em um ambiente que fuja aos padrões morais da maioria. Essa agenda, é bem verdade, enfraquece Tatuagem como cinema no mesmo compasso em que o habilita como catarse de uma causa. Se não é tão intransigente como Assis, Lacerda peca por ater-se demais a aspectos que não acrescem à narrativa.
As cenas de sexo entre Clécio e Arlindo, no entanto, não se encaixam nesse excesso. Há um interesse temático de mostrar dois homens se amando e as cenas, por mais fortes e gráficas que sejam, cumprem propósito central da narrativa de entender a função do desejo e como ele vai transformando aquelas figuras tão diferentes e, simultaneamente, se transformando em algo diferente também; em amor. A tatuagem que dá nome ao filme finalmente se justifica como catalisadora dessa transformação.
Os atores estão muito bem, desde Rodrigo Garcia como Paulete, amor de ocasião de Clécio, até Jesuíta Barbosa que deve tomar o cinema de assalto nos próximos meses. Seu desafio será eclipsar o talento colossal de Irandhir Santos, ator que parece desconhecer limites e ser capaz de arrebatar fazendo qualquer coisa. Ele é corpo e alma de Tatuagem, um filme que sem seus atores pareceria mais um grito e menos arte.

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