Cantiga capitalista
Não é uma tarefa fácil resenhar Cosmópolis (EUA/CAN/FRAN
2012). Isso porque o novo filme de David Cronenberg não se pretende palatável,
ou mesmo lógico, em um sentido dramatúrgico convencional. Também não é uma
“aberração” característica do cinema oitentista de Cronenberg. Portanto, um
exercício de racionalização incorre no risco de esterilizar o próprio status
quo de Cosmópolis.
Baseado no livro de Don DeLillo, o filme vislumbra a falência
do capitalismo. A gozação de Cronenberg é que o capitalismo, tão famigerado
como só ele, se retroalimenta da própria falência. Essa noção pode ser melhor
encampada quando do dialogo entre Eric Packer (Robert Pattinson), um jovem magnata
de Wall Street e Vija Kinsky (Samantha Morton), sua analista de teoria. A
conversa se dá na limusine branca do protagonista enquanto Nova Iorque queima
em protestos anticapitalistas do lado de fora. “Nada disso é original”,
constata em certo momento Packer, antes de devanear sobre um jato de guerra que
comprou no mercado negro simplesmente para poder olhar para ele e contentar-se
de possui-lo.
Packer é construído por Robert Pattinson com muito vigor. É
um jovem bilionário enfadado com sua vida e cioso por testar limites. Ele exala
sexo, como afirma uma personagem em dado momento, e se excita com o risco. A
personificação do capitalismo emulada em Packer vai ganhando viço e forma à
medida que o filme avança. Cronenberg investiga esse absurdo colocando algumas
das perguntas da plateia na boca dos personagens que cruzam o caminho de
Packer. Da prostituta “velha” que se ressente da contemporaneidade da vida
e quer saber como é gastar milhões, passando pela noiva robótica, pelo
segurança desconfiado, pelo analista de riscos que faz Packer se lembrar que
ele não é o mais “novo da turma” e culminando no confronto fervilhante com o
personagem de Paul Giamatti. No momento em que as duas faces erigidas pelo
sistema capitalista se confrontam, sai faísca.
Cronenberg não fez um filme para ser explicado. Fez um filme
sobre o qual se devem formular teorias. Nesse sentido, não há como ser mais
fiel à obra original.
É um equívoco apontar Cosmópolis como anti-capitalista.
Seria uma depreensão totalmente errada tanto do foco da narrativa quanto de seu
discurso. A própria estética adotada por Cronenberg dificulta essa percepção.
Cosmópolis é um filme sobre nosso tempo e sobre nossas
escolhas enquanto organização social. É um filme muito maior do que se supõe,
ainda que se ambiente majoritariamente em um espaço confinado (uma limusine) e
durante um único dia. Até mesmo o mal estar da civilização é trabalhado nessa
figura dramaticamente rica que é Eric Packer. Em um dado momento, ele responde
aos devaneios de um de seus seguranças inconformado com o fato de jovens
cederem tão precocemente às drogas: “Há dor suficiente para todos”.
Com muitas frases fortes e pensamentos obtusos
entrecortados, Cronenberg lança filosofia existencial por fotograma e
sobrecarrega seu espectador, ainda que o ritmo do filme seja lento. Essa
assimetria, inclusive, é metaforicamente referenciada na trama. Mais um meandro
de um trabalho de direção salutar.
Cosmópolis é arte para pensar. Do tipo que provoca
estranheza e fascinação. Cronenberg sabiamente utilizou a face, as caretas e o
status de Robert Pattinson - até mesmo o background que o público tem dele como
vampiro – para tecer um painel aterrador do mundo em que vivemos e cujo final,
como demonstra a última eloquente e inquietante cena, ainda não foi
escrito.
Ótima crítica de um filme que eu considero fundamental!
ResponderExcluirFeliz com seu retorno, Reinaldo...
ResponderExcluirQuanto ao filme, infelizmente, não chegou a Salvador, o que me surpreendeu muito, por tudo que o envolve. Mas, acho que essa questão pouco palatável que você ressalta assustou os exibidores...
bjs
Belíssimo comentário Reinaldo, análise interessante evidenciando o capitalismo. Não lembro de nenhuma crítica do filme que li até então abordando o assunto. Ainda não conferi o filme, mas todos estão inquietos com ele, público e crítica divididos. Uns afirmam que não é aquele Cronenberg mais estranho, outros já dizem o oposto. Não teve uma estréia blockbuster o que é curioso sendo quem é o protagonista.
ResponderExcluirAbraço.
Excelente crítica mesmo. Fiquei super "intrigado" pra conferir o filme, não estava imaginando que seria tão interessante assim (só fui ler a sua crítica sobre o filme...).
ResponderExcluirJosé Francisco: Obrigado. Tb acho fundamental para economistas, sociólogos e, principalmente, cinéfilos.
ResponderExcluirAbs
Amanda: Obrigado Amanda. Pois é, é um filme difícil. Mas bom pra dedéu!
bjs
Rodrigo: Pois é, o filme dividiu bastante. Teve quem se aborrecesse com o ritmo, mas faz todo o sentido dentro da lógica do filme. Teve quem não entendesse lhufas, já que é preciso ter raciocínio rápido e algum conhecimento de economia. Enfim, me parece um filme destinado a ser cult. Mas é difícil prever quando exatamente esse status chegará.
Abs
Alan:rsrs. Obrigado pelo crédito. O filme é muito interessante mesmo. Vc vai gostar!
Abs