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quinta-feira, 29 de março de 2012

Claquete repercute - Anticristo

Anticristo é, sob muitos aspectos, o filme mais íntimo, mais passional, de Lars Von Trier. Fruto de uma depressão profunda e um mal estar que o levou a uma crise existencial tão enraizada nela mesma, Anticristo é uma leitura bipolar da relação de Von Trier com o mundo, com o cinema e com ele mesmo.   
Talvez por isso tenha sido um projeto que suscitou tantas polêmicas e dilatou a resistência à pessoa do cineasta. No festival de Cannes de 2009, onde lançou o filme, Von Trier se auto-proclamou o melhor cineasta do mundo e recusou-se a explicar seu filme, taxado por muitos de misógino e apelativo. As declarações de Von Trier eminentemente transformaram o status de Anticristo e provocaram uma percepção mais conspícua naqueles propensos às simbologias que, francamente, transbordam no filme.
A começar pelo caráter terapêutico que a feitura do próprio exerceu sobre Von Trier e pelas projeções nele embutidas.
As opções estéticas do diretor dinamarquês merecem especial atenção. A estrutura do filme objetiva confrontar noções espessas e conflituosas de psicologia e religiosidade. A culpa, conceito tão cristão e enraizado na tradicional educação ocidental, é o principal vértice sobre o qual Von Trier ergue seu filme – um drama psicológico que se transfigura em terror. Há esse casal que protagoniza um dos mais belos prólogos da história do cinema. Eles fazem sexo, filmado com estilização cênica assoberbada por Von Trier, e enquanto o gozo é experimentado, um acidente terrível tira a vida do filho pequeno do casal. Tudo poderia ter sido evitado se o gozo fosse adiado. É a ilação que fica. A partir daí, o cineasta divide seu filme em três capítulos e mais um epílogo. E acompanha o processo de flagelação física, emocional e psicológica da mulher – vivida com assombrosa dedicação pela atriz Charlotte Gainsbourg – cujo marido (Willem Dafoe), terapeuta, julgar poder contornar.
Uma classificação pertinente, e que circulou à época do lançamento de Anticristo nos cinemas, é de que se trata de um “torture porn psicológico de arte”. De fato, é preciso ser entusiasta da psicologia para apreciar Anticristo – mesmo que não compactue com o desalentado processo criativo de Von Trier, essa condição é necessária para que o filme se torne mais inteligível e menos “viajado”.
Por outro lado, é impossível resistir à técnica da fita. Com fotografia monocromática, direção de arte exuberante, uso poderoso da trilha sonora e uma noção de câmera tão extenuante quanto envolvente, Anticristo é um testamento de um diretor no auge criativo e com profunda compreensão da linguagem cinematográfica e, mais ainda, ansioso por desafiá-la.

Sexo, culpa e estilo: Anticristo é um petardo estético de Lars Von Trier, mas é também uma aguçada provocação às convenções ocidentais em diferentes campos como religião e psicologia  


A violência em todo o seu realismo cru está lá para chocar ou se ajusta etimologicamente à estrutura do filme? Um pouco de ambos. O choque é algo valioso em Anticristo. É um elemento desestabilizador do qual Von Trier se beneficia e possibilita que sua narrativa alcance tons mais sugestivos pela objetividade das imagens.
Feminilidade, cristianismo, sexo, terapia, desejo... são questões que se intercambiam na poderosa mise-en-scène estabelecida.
É, como aferido, um filme muito íntimo. Gerado em um processo depressivo ao qual, na posição de espectadores do filme, estamos todos alienados. O sentido que Von Trier acena é, em última análise, um mistério que nunca excederá a densidade estética e a ousadia temática da própria obra.

4 comentários:

  1. Só pela beleza técnica do prólogo, o filme já vale. Ainda que seja chocante ver o bebê caindo, a ideia do pecado original e a forma como o filme desenvolve a loucura do casal é incrível. Chocante, mas excelente.

    bjs

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  2. O Anticristo não é um filme fácil de ser visto e está muito mais ligado ao contexto do próprio diretor do que à obra em si. Quase uma poesia estética: agressivo, forte, sublime e também um autorretrato do momento pessoal do diretor.
    O filme também não é para um expectador comum.

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  3. Também concordo com a Amanda Reinaldo, o filme já vale pelo prólogo que é um das coisas mais impressionantes que vi nos últimos tempos.

    Ótimo texto, como sempre. "Antocristo" é um filme complicado e o "pior" no bom sentido da filmografia de Von Trier. Um diretor difícil de lhe dar.

    Gainsbourg e Dafoe mais do que totalmente entregues. Se machucam de verdade em todos os aspectos!

    Abraço.

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  4. Amanda:É isso mesmo.
    Bjs

    Patrícia Stöher: E disse tudo Patrícia. Concordo plenamente.
    Bjs

    Rodrigo Mendes:Obrigado Rodrigão! É isso mesmo. Os dois atores se entregam demais.
    Abs

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