É cada vez mais frequente nas produções nacionais a figura do preparador de elenco. Existem profissionais altamente conceituados e cujos trabalhos já viraram referência no meio. É o caso, por exemplo, de Fátima Toledo que assistiu Fernando Meirelles em Cidade de Deus e, depois de trabalhos nos dois Tropa de elite e no recente Dois coelhos, já figura como a mais proeminente e reconhecida profissional no mercado.
O trabalho do preparador de elenco consiste, basicamente, em municiar emocionalmente os atores para viver os personagens e honrar a visão do diretor. É um trabalho válido, principalmente, em circunstâncias como a de Cidade de Deus, em que a produção se viu lidando com diversos atores não profissionais.
Cena de Tropa de elite: os dois filmes de José Padilha contaram com os préstimos de um preparador de elenco
Nesse contexto, o preparador de elenco age de maneira a direcionar esses atores para uma representação mais naturalista, ruidosa, extrema. Tirado desse contexto, a figura do preparador de elenco tornar-se um tanto quanto obsoleta. No último festival de cinema de Tiradentes (MG), uma interessante discussão se embrenhou nos bastidores do evento. Atores anônimos e famosos, como Selton Mello, levantaram voz contra a preparação de elenco. Para eles, a profissão surgiu da carência de bons diretores de atores no Brasil. Procede esse argumento. De fato, não há a figura do preparador de elenco em produções com atores profissionais em nenhum outro país do mundo. Adotando Hollywood como parâmetro se verifica a existência do diretor de elenco. Esse profissional costuma atuar mais fortemente na pré-produção. Cabe a ele, ainda que essa “regra” seja bem flexível e no final das contas depende de cada diretor, selecionar os candidatos aos papéis, conduzir entrevistas e testes para submeter ao diretor. O profissional pode ou não atuar no set, mas dificilmente instruirá o ator sobre como atuar. Em Hollywood, essa função é apenas do diretor.
A preparadora Fátima Toledo em foto de divulgação: expoente na profissão, ela já preparava elencos desde Pixote nos anos 80. No entanto, popularizou-se na última década |
Analisando friamente, é possível entender a lógica que move a proliferação do preparador de elenco no Brasil. Tanto pela pouca oferta de atores habituados com a linguagem empregada no cinema (a linguagem da tv ainda é uma constante no cinema), como pela concisão da produção de um longa-metragem no país. Até mesmo pelos mecanismos de captação e produção de cinema, os diretores não dispõem de muito tempo para pré-produção e ensaios dirigidos com os atores. Contudo, o sucesso do preparador de elenco é indissociável da percepção de que os diretores de cinema no Brasil não estão suficientemente seguros de suas habilidades na direção de atores. Afinal, compete a eles ensejar nos atores, por variadas técnicas, o que pretendem tanto dos personagens como de suas caracterizações. David Fincher, notório perfeccionista, conversou muito com Rooney Mara sobre Lisbeth Salander (personagem de Os homens que não amavam as mulheres) para se certificar que ela a havia entendido. O mesmo Fincher rodou 99 takes da cena inicial de A rede social, até que toda a força dramática da cena fosse por ele capturada. Darren Aronofsky submeteu Natalie Portman a uma rotina exaustiva de treinos e privações, muito semelhante às de sua personagem em Cisne negro, para que ela “entrasse” em Nina Sayers. Esses exemplos permitem intuir que as técnicas utilizadas pelos preparadores de elenco (“se bater, se jogar no chão”, como pontuou o ator Marat Descartes que se negou a ser “treinado” por Fátima Toledo em 2 coelhos) não são tão heterodoxas assim. Contudo, o fato dessa preparação estar sendo terceirizada no Brasil pode fraturar a relação entre atores e diretores. Além de, inadvertidamente, ampliar o mal que deseja combater: a pouca afinidade entre atores e diretores em matéria de cinema.
É com apreensão que o cinema brasileiro deve observar a prosperidade dessa função. Ela afere a falsa impressão de que o mercado de cinema no Brasil está mais profissional. Incorre-se no risco de deixá-lo mais marginalizado e viciado.
David Fincher e Rooney Mara conversaram muito sobre Lisbeth Salander antes de começarem a filmar. A atriz, em entrevista recente, disse que seria difícil voltar à personagem nas sequências sem a colaboração de Fincher
Bom texto e boa observação, Reinaldo. Fiz um curso aqui com Sérgio Machado exatamente sobre direção de atores e ele falou que achava que o papel da preparadora de elenco era fundamental, que em seus filmes era um ítem obrigatório, até que teve problemas com alguns atores mais experientes que se recusaram a fazer o trabalho, então, começou a rever os valores e perceber que nem sempre é a melhor opção.
ResponderExcluirbjs
Excelente matéria Reinaldo.
ResponderExcluirAcho o trabalho de Fátima Toledo essencial, ela é fera no que faz.
Algumas pessoas confundem o trabalho do preparador de elenco com o diretor de casting e até mesmo a função do diretor. Em alguns casos em também me confundo, mas Fátima me mostrou como ela trabalha. O Making of de Cidade de Deus é bem interessante.
Há diretores mais técnicos e que não se prendem a trabalhar com o ator, por exemplo, George Lucas e James Cameron e é até notável o resultado final do elenco em seus filmes que disfarçam nos efeitos visuais (se bem que há atores que “se viram” e se superam). Meirelles mesmo melhorou um pouco a função "diretor de atores", mas em "Cidade" Fátima Toledo e Kátia Lund foram tão diretoras quanto ele.
Abç.
Amanda Aouad:Obrigado Amanda. Fico feliz que tenha gostado do ensejo da discussão. Pois é, relativizar é preciso!
ResponderExcluirbjs
Rodrigo Mendes: Obrigado meu amigo. Pois é, acho que consegui passar bem a ideia de que o preparador de elenco é sim preciso em alguns contextos, mas não se pode enraizar a figura desse profissional no sistema produtivo do cinema brasileiro.
Abs
Compreendo o seu ponto de vista, mas não creio que enraizar este profissional no mercado cinematográfico seja uma ameaça ao mesmo,
ResponderExcluiracho simplesmente que não dá para tomar o sistema de outros países, que de fato possuem um mercado mais produtivo e com muito mais recursos financeiros, que talvez justifiquem o tempo gasto pelo diretor com a preparação do seu próprio elenco, elenco este, que tem um grau de profissionalismo, no que se refere ao conhecimento da linguagem cinematográfica, o que não o caso da grande maioria de atores do nosso mercado. Creio que este profissional tem muito a contribuir nesta nova fase do cinema Brasileiro.
Márcia: Obrigado pelo comentário Marcia. A comparação com o mercado americano teve o único intuito de prover contexto. Agora, não pode ser desconsiderada já que é o principal modelo no qual o cinema brasileiro se fia (o próprio José Padilha traçou a estratégia de captação e distribuição do segundo Tropa de elite baseado nesse modelo de negócios).
ResponderExcluirO saldo da minha análise, no entanto, se dá apenas considerando o próprio cinema nacional. Existem projetos que realmente dispensam a preparação de elenco. É preciso que diretores e atores busquem a compreensão da linguagem cinematográfica e estabeleçam relação de confiança. Não se pode legitimar um intermediário e burocratizar ainda mais a produção.
Como vc pôde notar no texto, reconheço os benefícios que esse profissional pode trazer à produção de cinema, mas é preciso ter em mente que ele é uma excepcionalidade. Mas a discussão está aí para ser tomada pelo mercado...
Grande abraço