Páginas de Claquete

terça-feira, 21 de junho de 2011

Questões cinematográficas - A homogeneidade da crítica de cinema e esterilização da análise fílmica

Recentemente, o exercício da crítica de cinema vem sendo bastante questionado. Tanto internamente quanto externamente. O primeiro impacto na credibilidade da crítica surgiu com o advento da internet, agora - na era das redes sociais - a crítica de maneira geral, e a de cinema em particular, padronizam-se perigosamente.
Foi com a eclosão do movimento de cinema chamado Nouvelle vague na França – que consagrava o cinema de autor – que a crítica ganhou status e relevância histórica. Antes dessa virada, era uma atividade que interessava apenas a intelectuais e não reverberava a contento. Depois, apesar de predominar entre intelectuais, desbravou fronteiras sociais e culturais a reboque do cinema hollywoodiano.
A atividade crítica é regida pelo interesse em problematizar a obra. Em apontar suas virtudes, seus equívocos, mas antes disso, direcionar o olhar do espectador. Prover contexto histórico, cultural e cinematográfico ao interlocutor. Sim, pois há uma troca. O leitor busca a crítica à procura de contexto, complementação e, invariavelmente, aprovação. Muito em virtude disso, há leitores que subjulgam sua ida ao cinema ao olhar de determinado crítico. Essa é a razão pela qual muitos críticos melhoram a experiência de se ver determinado filme, por induzir o leitor a refleti-lo fora do espectro delimitado pelo cineasta. É uma atividade rica e de caráter complexo.
Essa complexidade foi se soltando conforme o dinamismo da internet foi se estabelecendo. Essa é uma linha temporal válida para o fim que se propõe esse artigo: radiografar a atividade da crítica em sua contemporaneidade.

 Capa da edição de julho da revista de cinema mais prestigiada do mundo, a britânica Empire: muito cinema e muita informação, zero em crítica


Ser crítico pressupõe vasta bagagem cinematográfica, mas também exige formação cultural sólida e rigor na formulação de seu trabalho. É uma equação engenhosa. Críticos de profundo respaldo midiático não se detém a preceitos básicos da função. Deixam-se levar por gostos pessoais, orientações editoriais ou preconceitos que envolvam suas percepções do mundo ou do cinema. Reside aí um ponto de questionamento atual. Não gostar de um filme não o torna necessariamente ruim. É preciso separar as expectativas pessoais daquelas induzidas pela fita em questão. É preciso analisar uma obra cinematografia por sua proposta. Esquivar-se do lugar comum é recomendável, embora desconfortável. Principalmente quando existe uma estafa na atividade, evidenciada no dinamismo da internet. O público em geral, excetua-se desse montante o cinéfilo, acostumou-se muito rapidamente com resenhas que vão pouco além da sinopse do filme. Análises mais embasadas inquietam esse leitor mais voraz e menos atento. Esse ponto de convergência altera o status quo da crítica de cinema. Muitos críticos cedem às demandas de leitores que não se sentem à vontade com análises pormenorizadas, outros resolvem mastigar o filme em explicações técnicas destacando movimentos de câmeras e frequência de cortes na esperança de comunicar-se com a geração Youtube.

Capa da última edição da revista gaúcha Teorema, uma das poucas a privilegiar a boa crítica de cinema


Existe ainda a inexorável tentação de classificar o filme. Pregar-lhe um rótulo. Não que o crítico deva se abster de classificar um filme como bom ou ruim, mas deve evitar fazê-lo unicamente por meio de adjetivos. É importante embasar sua opinião, atentando para as expectativas do público, do cineasta, da produção cinematográfica (quando for o caso) e discorrer a respeito com a ideia primária de promover o debate. Expandir a experiência cinematográfica. Não se vê muito disso hoje em dia. O maior problema, no entanto, é que não se sente muita falta. Pesquisa encomendada pela rede de tv CNN, em 1995, (quando a internet ainda não era uma realidade tão bem desenhada) revelou que 80% do público americano frequentador de cinema lia resenhas antes ou depois de ir ao cinema. A mesma pesquisa revelou que 60% entendiam que a crítica era importante para que um filme fosse completamente digerido. 50% dos entrevistados asseguraram que liam periodicamente determinados críticos. A CNN encomendou recentemente uma nova pesquisa nos mesmos termos. Datada de 2008, a pesquisa revela mudanças de comportamento no público frequentador de cinema. 50% admitem ler regularmente críticas, mas desse montante, 80 % só o fazem depois de assistir o filme. Esse fato revela que o espectador atual busca a crítica como complemento, preferencialmente se gostou muito do filme ou não o entendeu. Essa imagem de apêndice caracteriza uma regressão cultural. A mesma pesquisa mostrou que 70 % dos americanos que vão regularmente ao cinema não se orientam pelo posicionamento da crítica em relação a determinado filme. Isso ajuda a explicar porque um filme tão difamado quanto Se beber não case-parte II se tornou o hit que é e produções tão elogiadas como Guerra ao terror (o vencedor do Oscar de menor bilheteria da história) são pouco vistas.

Cena de Se beber não case - parte II: filme com péssimas críticas e ótima bilheteria


É lógico que há estratégias de marketing, pontos de distribuição e outros fatores que contribuem para esses números tão dispares, mas a instrumentação da crítica não deixa de ser um fator. A mesma pesquisa revelou que a internet é a principal plataforma para acesso à crítica de cinema. Bem sabe o leitor que há muito gato se passando por lebre no mundo do www. Essa condição empobrece a atividade crítica e provoca desinteresse. Não à toa, as redes sociais já despertam mais o interesse dos principais estúdios e executivos de cinema do que famosos críticos como Roger Ebert e A. O Scott nos EUA e Rubens Ewald Filho e Inácio Araújo no Brasil.
A crítica de cinema é uma atividade, em causa e efeito, em decadência no Brasil e no mundo. Há, no Brasil, poucos críticos que se esmeram nos preceitos básicos da atividade e resistam a consternação provocada pela necessidade de audiência. Cássio Starling Carlos e Luiz Zanin Oricchio são dois deles.
A linha editorial de Claquete obedece à mesma diretriz. O blog acredita que a crítica de cinema é vital para o cinema e para o público. Agrega valor cultural à experiência cinematográfica e amadurece o olhar do espectador. O blog veste-se como arauto no combate à esterilização da análise fílmica que se vislumbra no presente. A padronização imposta pela mudança de comportamento do público, pela escassez de qualificação, pela estafa digital e por equívocos estruturais enraizados em uma demanda equivocada deve ser refutada por quem tem no cinema sua base orgânica.

7 comentários:

  1. Muito bom, Reinaldo. Discussão sempre oportuna. E interessante essa pesquisa. Na verdade, vemos as pessoas cada vez com mais preguiça de ler. Vide o movimento que percebemos nos cinemas de shoppings aqui de Salvador que cada vez mais exibem filmes dublados, que sempre lotam mais que os legendados. A crítica como discussão cinematográfica, da forma como foi proposta pelos rapazes da Cahiers Du Cinéma, está mesmo escassa. Nos jornais temos apenas comentários poucos embasados e as revistas de cinema diminuiram muito. A internet deu voz a todos e é possível pescar boas e más investidas. E acaba que os textos menores atraem maior número de leitores.

    Mas, a gente continua na busca por melhores caminhos sempre. Não sei se já posso me chamar de crítica cinematográfica, mas estudo, leio e claro, vejo filmes, sempre para melhorar cada dia nesse ofício.

    Bom ver o Claquete trazendo cada vez mais textos reflexivos.

    bjs

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  2. Excelente post, Reinaldo! Acho que você levanta muitos argumentos interessantes. Especialmente porque eu acho que hoje em dia, raramente, a gente vê crítica cinematográfica nos grandes meios de comunicação. A crítica é incipiente, na verdade. Não tem espaço nos jornais, na TV, nas revistas. A cobertura é feita como se o filme fosse um evento.

    Por isso que eu acho que a crítica na Internet veio pra revolucionar, de uma certa forma, tudo isso. Porque a Internet te dá o espaço livre pra você falar sobre o filme, fazer análises mais aprofundadas. Mas, mesmo assim, há que se observar que são poucas as pessoas que possuem as características que você cita em um bom crítico.

    A boa crítica vem da prática e do trabalho árduo e dedicado a ela!!!

    No mais, finalizo com uma coisa: a necessidade de rotular sempre é muito criticada de forma negativa, mas, dentro do jornalismo atual praticado no Brasil, ela é quase que uma necessidade. O produto precisa ser enquadrado porque o público necessita disso. As pessoas querem a embalagem já pronta. Análise profunda, coerente, são poucos os que querem!

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  3. Sempre existirá a necessidade do critico, até mesmo para o próprio publico ter a plena certeza se o filme é bom ou não.

    Claro que após muitos anos, quem já escreve desenvolve uma visão mais apurada. Muitas vezes, existem determinadas criticas de jornais que mostram nitidez para vender um filme.

    Ser crítico hoje é fazer o papel mais ingrato que é ver de tudo, até o que odeia, mas sai com a alma limpa em saber que faz tudo isso pelo amor ao cinema.

    Abraços.

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  4. Gostei muito do texto e acho que sua reflexão se expande para outras áreas do jornalismo cultural (literatura, música, etc).

    Acho que cabe ao crítico hoje achar um novo papel, assim como o jornal e a televisão tiveram que reinventar-se com o advento da internet, que acredito tenderá mais para a análise das obras. Se é pra dizer "gostei" ou "não gostei", os 140 caracteres do twitter e qualquer amigo meu dão conta do recado.

    Também achei super interessantes essas pesquisas que você traz sobre a relação do leitor com a crítica de cinema.

    Bem, a "Claquete" é o meu site preferido para cinema porque só você nos dá toda essa contextualização e propõe esse tipo de reflexão.
    Serei sempre leitora garantida ;)

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  5. Só posso agradecer por leitores tão atentos e propensos ao debate como vcs que se manifestaram aqui no tópico de comentários.

    Amanda: Obrigado por sua intervenção. Sempre pontual e revestida desse conhecimento que vc alude. Sem dúvidas você, mais do que excelente leitora, é uma cinéfila com tremenda bagagem. Nesse caso, acho que cabe a semântica apurar se pode ou não ser chamada de crítica de cinema. Fato é que seus textos são mais embasados e contextualizados do que muitos que vemos submetidos por renomados críticos.
    Bem, acho que a internet favoreceu esse empobrecimento cultural de alguma forma. Mas isso já é outra discussão...
    bjs

    Kamila: Concordo muito com vc, mas discordo em dois pontos. Acho que a internet democratizou o acesso ao cinema. Te deu oportunidade de falar sobre os filmes que gosta, desgosta, mas não é ela quem propicia a boa crítica. Não vejo relação aí. Quanto a essa questão do rótulo, vc cerca bem a questão. É do público essa necessidade de rotular, mas é preciso resistir a isso. Acho que o jornalismo consegue essa "proeza" em outras frentes, mas aí passa, também, pela esquálida atenção à cultura que o país dispensa. Inclusive em termos de mídia.
    Mas a discussão é boa.
    Bjs

    Johnny Strangelove: É mais ou menos por aí mesmo...
    Abs

    Aline: Poxa Aline, obrigado mesmo pela deferência. Fico muito feliz. Como cito no artigo, essa "agonia" da crítica é geral. O dinamismo da internet anda contagiando outras esferas da cobertura midiática. É um movimento, ainda em seus primeiros impulsos, mas já bem delineado.
    Bjs

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  6. Excelente defesa da tão rara crítica cinematográfica com critérios. Extensas e minuciosas críticas só não são mais raras do que leitores dispostos a encará-las. O que é uma pena!!
    Mas vamos reagir,
    Abs,
    Jaison Castro Silva

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  7. Jaison Castro Silva: Obrigado pelo apoio e generosidade Jaison.Reagiremos com certeza!
    Abs

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