Páginas de Claquete

domingo, 4 de julho de 2010

Claquete repercute - Crash-no limite



Existem determinados filmes cujo apelo parece inerente. Seja pela união de determinados atores, seja a volta de um adorado diretor ao gênero que o consagrou ou mesmo por abrigarem temas de relevância social. Crash – no limite (2005) se alinha a essa última categoria. A fita que marca a estréia na direção do roteirista Paul Haggis é o chamado filme coral (filme que agrega diversos arcos narrativos e múltiplos personagens que podem ou não se cruzar). O tema principal de Crash é o preconceito. E não há como uma fita americana abordar o preconceito sem enveredar pelo de ordem racial. Em Crash, a tensão racial é deflagrada e manipulada por um roteiro que não poupa submeter seus personagens a situações limites (daí o “original” subtítulo nacional).
Temos o promotor (Brendan Fraser) que para se eleger precisa do apoio da comunidade negra de Los Angeles, mas que é um poço de indiferença elitista, sua mulher (Sandra Bullock) é outra que alimenta forte resistência aos negros. Em outro arco temos o detetive vivido por Don Cheadle, cuja mãe o culpa pelo irmão mais novo ter cedido a marginalidade. O parceiro de crimes desse irmão mais novo é vivido pelo personagem de Ludacris, um malandro que gosta de tirar um sarro em cima do preconceito de suas vitimas. Temos ainda o empresário vivido por Terence Howard que testemunha sua mulher (Tandie Newton) ser vitima de abuso policial perpetrado por um policial em frangalho emocional (Matt Dillon). Há, ainda, um núcleo que trata dos imigrantes e também da forma como são vistos por uma sociedade ainda sob as chagas do 11 de setembro. Todas as histórias de uma maneira ou de outra se interligam.



O ator Don Cheadle recebe orientações do diretor e roteirista Paul Haggis: um filme pensado para ser relevante


Como se vê Crash- no limite se apresenta como um filme de relevância social. Foi pensado para sê-lo. Daí ter atraído um razoável número de artistas conhecidos para seu elenco. A fita de Paul Haggis, no entanto, não ensaia nenhuma solução corajosa ou uma análise mais aprofundada das razões que levam a intolerância. Crash é moralista e previsível do começo ao fim. Dramaticamente o filme é muito eficiente. Sem sombra de dúvidas, o filme propõe situações suficientemente cativantes e nauseantes. Contudo, em termos de valorizar o cinema como palco de discussões e proposição das coisas humanas, o filme é falho. Ao optar por manipular personagens desenhados dentro de um arquétipo convencional e padronizado e de submetê-los todos a momentos de catarse “instrutiva”, Haggis se distancia de qualquer efeito positivo que seu filme pudesse surtir enquanto cinema. O que se observa é uma mea culpa canhestra de uma nação que se inscreveu na história como uma das mais preconceituosas. O paradoxo representado por Crash é que os EUA são, na verdade, uma nação construída por imigrantes e que são eles que ainda pulsam o coração da nação. Basta olhar o atual ocupante da Casa Branca para perceber que a América se alimenta de paroxismos como os que Haggis submete todos os personagens de seu filme.


Terence Howard vive um personagem esmagado em seu comportamento implosivo: um filme de poucas sutilezas que reforça uma mensagem de tolerância



Crash se aprofundou nas páginas de história ao roubar o Oscar de melhor filme de O segredo de Brokeback Mountain, um melodrama romântico de muito tato sobre o amor homossexual que movia dois caubóis na América profunda dos anos 60. Brokeback Mountain ganhou todos os prêmios da temporada 2005, menos o Oscar de melhor filme. A vitória de Crash- no limite foi tida nos círculos da crítica internacional como um ato de preconceito da academia. “Entre as minorias, antes os negros do que os homossexuais”, bradaram alguns incrédulos da virada de última hora. Não é bem por aí. A vitória de Crash no Oscar tem mais a ver com especificidades e com o alto nível da disputa do que com um elemento tão arcaico e ultrapassado. Mas a suspeita sempre irá pairar. Crash, foi pensado para ter relevância social, mas era socialmente o menos relevante da disputa (que ainda tinha Boa noite e boa sorte, Munique e Capote), mas sua vitória mais uma vez deflagraria uma mensagem de tolerância (além da patacada moralista) tão cara ao soft power (influência cultural) americano.
No fundo Crash- no limite mostra, mesmo que por vias tortas, que o mundo é esse antro corrompido mesmo. A cena final (com a música Maybe tomorrow ao fundo) mostra que a esperança de um novo amanhã pode até raiar, mas não há como evitar que ela seja fugaz.

11 comentários:

  1. Agora lendo seu texto fico impressionado com a quantidade de filmes bons que concorreram ao Oscar 2005. Foi uma pena Brokeback Mountain não ter ganho porque na minha opinião era o melhor de todos. Crash tem seus pontos altos e esse estilo Coral que vc mencionou me agrada muito, ainda assim, ficou a desejar porque não conseguiu ir além de mostrar a questão do preconceito, não propondo discussões a respeito do tema.

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  2. O Oscar de 2005 foi muito criticado por premiar Crash - parte da crítica odiou o filme. Mas isso não significa que ele seja um filme ruim. Só não é um filme merecedor do prêmio de Melhor Filme do Oscar.

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  3. Adorei o texto porque traz uma crítica super inspirada que me fez rever meu próprio preconceito contra o filme - que devo alugar em breve. Eu tinha uma impressão de ser uma colagem muito tosca de nomes consagrados em uma campanha descarada pelo Oscar - ok, ainda acho isso um pouco, mas pelo menos mostra que a película não é apenas uma produção caça-estatueta, rsrsrs

    Beijos

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  4. Lembro que na época o filme fez um grande barulho e esperava uma obra de impacto. Vi e é meio isso que você falou, moralista e previsível. Tinha até esquecido dele em minha memória... Brokeback Mountain perder foi mesmo uma pena.

    bjs

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  5. Uma obra-prima que coloca seus personagens em situações extremas. Paul Haggis, pode até falhar em determinados momentos, porém, não é o suficiente para estragar, e outra, Crash levar o OSCAR talvez será assunto de anos e anos ainda, eu acho muito injusto!

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  6. Eu gosto muito de "Crash - No Limite". Muita gente acusa de ser uma obra manipuladora, mas eu acho que a obra é verdadeira no propósito que ela quer mostrar. E sou uma das poucas pessoas que achou que o filme mereceu ganhar o Oscar de Melhor Filme - mesmo a minha obra favorita de 2005 tendo sido "Boa Noite, e Boa Sorte", uma obra, que, infelizmente, não tinha a MÍNIMA chance de vencer o Oscar principal.

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  7. Fernando: Concordo com vc. O nível era altíssimo aquele ano. Foi o último grande ano do Oscar. Lembremos ainda que filmes como O jardineiro fiel,Marcas da violência e Ponto final ficaram de fora da disputa principal. Concordo tb quanto a Brokeback mountain. Era mais filme.

    Mateus Souza: Concordo contigo tb Mateus. Abs

    Aline: Olha Aline, não é uma produção caça estatueta (inclusive foi lançado em março, longe da disputa pelo ouro que só se inicia em dezembro), mas é um filme que tem muitos problemas (como eu citei no artigo). contudo, é um ótimo filme. Dramaticamente poderoso, ainda que cheio de equívocos. bjs

    Amanda: Mais uma vez concordamos aqui Amanda. bjs

    Cleber: Não acho o filme esse primor todo, mas não descarto sua importância (tanto é que ele inaugura essa seção Claquete repercute) e concordo quando vc diz que a vitória de Crash dará pano para manga por anos. Que me venha a mente o último grande favorito a perder um Oscar nesses termos foi Cidadão Kane que perdeu para Como era verde o meu vale em 1943. Quem é Crash aí e quem é Brokeback mountain? abs

    Kamila: Sou um dos que afirma que Crash é manipulador. É Ka, não tem jeito. Concordo que o filme seja verdadeiro em seu propósito, mas isso não faz sua estrutura ser menos manipuladora. Haggis não fez a menor questão de ser sutil aqui. Assim como Danny Boyle em Quem quer ser um milionário? (já abordei essa relação em uma seção insight que me recordo vc gostou bastante).
    Mas o filme é bom sim. No entanto, era o "menos forte" dos 5 indicados.
    bjs

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  8. Quem se emocionou ou gostou de Crash é porque não viu o impressionante Magnolia - claramente beberam da fonte dele. O filme de Paul Thomas Anderson é infinitamente superior...pelo estilo, abordagem...aliás, diversos filmes que abordam vários personagens em meio a conflitos individuais são superiores a Crash. Mas, ainda sim, foi um bom filme.

    E eu acho que há inúmeros filmes que abordam a homossexualidade ou amor gay muito mais contundente que o de Ang Lee.

    abraço

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  9. Cristiano: Na verdade, o filme coral deriva do cinema de Robert Altman, de quem P.T Anderson é fã e pupilo (chegou a finalizar o último filme de Altman quando o mesmo se afastou devido a problemas de saúde). E eu concordo com vc. Há muitos filmes (quase todos do Altman)que superam Crash em qualidade e relevância. Quanto a Brokeback mountain, discordo. Acho que Ang Lee foi supremo neste filme.
    abs

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  10. Oi Reinaldo,

    Belo texto, bastante lúcido.

    Eu tenho uma relação complicada com Crash. Eu concordo que, dramaticamente, ele convence, mas a sensação que me dá é de um filme de intolerância que dá um tom moralista que não é sincero. Não soa natural e, para uma discussão social deste tipo em uma américa preconceituosa por natureza, o filme poderia ter enveredado, com tato e honestidade por uma provocação do: "por que somos racistas"? Porque os USA agem assim?

    É engraçado pensar em Crash, quando eu penso em uma temporada de estudos que fiz em Boston. Claramente eu vi que os USA são preconceituosos durante o dia, porém "às escondidas", é uma sociedade que o negro beija a branca em uma balada num inferninho qualquer. Durante o dia é uma coisa, de noite é outra?

    Coloquei tal exemplo para dizer que não basta fazer um filme dramático que narra para ser dramático e para estampar a questão racial nos USA como um grande dramalhão moralizante. É mais honesto mostrar a hipocrisia da sociedade americana.

    Bjs!

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  11. É exatamente isso que exponho no texto madame. Captaste bem o espírito e enriqueceste o debate com sua experiência pessoal. Meu muito obrigado.
    bjs

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