domingo, 3 de março de 2013

Insight - A Globo Filmes atrofia o cinema nacional?



Quem acompanha o noticiário cultural brasileiro testemunhou, em meio à consternação provocada pela expectativa para a 85ª cerimônia do Oscar, um embate algo fisiológico entre Carlos Eduardo Rodrigues, diretor executivo da Globo Filmes, e Kleber Mendonça Filho, diretor de O som ao redor, filme brasileiro mais elogiado internacionalmente desde Cidade de Deus (2002). A polêmica começou quando Mendonça Filho pôs em xeque em um depoimento à "Folha de São Paulo" a importância da Globo Filmes para o cinema brasileiro. Via redes sociais, Rodrigues provocou o cineasta desafiando-o a fazer um filme com a estrutura da Globo Filmes e ter mais de 200 mil pagantes (O som ao redor em poucas salas de exibição já conseguiu históricos 70 mil pagantes no Brasil e contando) e provocou que, se não conseguisse, talvez tivesse que se assumir “um cineasta que é melhor crítico” – em referência ao fato de Mendonça Filho ter sido crítico de cinema antes de se experimentar na direção.
O diretor de O som ao redor devolveu a provocação, com alguma elegância, mas sem baixar a guarda, e disse em uma nota publicada em uma rede social que a Globo Filmes “atrofia o conceito de diversidade no cinema brasileiro e adestra um público cada vez mais dopado para reagir a um cinema institucional e morto”. Ele devolveu o desafio de Rodrigues instando o diretor executivo da Globo Filmes a produzir filmes que não tenham como objetivo primário alcançar sucesso de público.
Depois da troca de rusgas, Rodrigues resolveu mudar o tom e divulgou nota, dessa vez à imprensa e não via rede social, em que afirma “fico feliz de estarmos, embora com pontos de vista diferentes, defendendo a mesma ideia: um cinema brasileiro para todos, sem distinção de público”.
A discussão, que esbarrou em cacoetes promocionais e ranços históricos do jeito de se produzir cultura no Brasil, esfriou e não deu conta da raiz do problema. A Globo Filmes realmente atrofia o cinema brasileiro, como afirmou Mendonça Filho, ou essa é uma interpretação errônea do mercado de cinema brasileiro?
É preciso, para ter mais clareza nessa discussão, perceber nela a contaminação de certos atores políticos ligados à esquerda e à direita e como, invariavelmente, eles se ajustam à manifestação cultural, e à promoção de cultura em si, no país.

 Ingrid Guimarães e Maria Paula em De pernas por ar 2, o mais recente e retumbante sucesso de público com o selo da Globo Filmes: em defesa do cinema de massa

Kleber Mendonça Filho no jeitão on the road em imagem registrada pela Revista Cult: em defesa do cinema para pensar

Mendonça Filho advoga uma visão, até certo ponto ultrapassada, de que uma empresa forte em algum segmento seja maléfica para o segmento como um todo. Não cabe à Globo Filmes pensar em um cinema de nicho e não na sua bem aventurança financeira. Não quer dizer que a empresa não possa, e deva, diversificar a sua produção cinematográfica. Mas isso é uma questão de gestão e percepção de mercado. É histórica a relação do brasileiro com a linguagem televisiva (relação esta que a Globo ajudou a sedimentar) e uma mudança nessa relação não pode ser por ruptura e sim geracional. A tecnologia está a serviço de um cinema emergente e pensativo fora do eixo Rio/São Paulo. O próprio Kleber Mendonça Filho é beneficiário de um programa do governo do Estado de Pernambuco, o Funcultura, que contempla majoritariamente o audiovisual. O acesso a esse programa é muito mais dinâmico do que, por exemplo, à contraparte nacional na figura da Ancine (Agência Nacional do Cinema).
Isso quer dizer que não compete a Globo Filmes praticar cinema independente. Ela é uma empresa e, como tal, deve mirar o seu lucro. Nada impede também que se mire em exemplos como o da universal que criou seu braço independente, a Focus, que produziu filmes como Brilho eterno de uma mente sem lembranças (2004), Encontros e desencontros (2004), O jardineiro fiel (2005), entre outros sucessos de crítica e público.
Não se pode, no entanto, responsabilizar uma empresa por estar fazendo o que dela se espera: produzindo lucro. Mendonça Filho é oportunista ao simplificar uma questão que vai muito mais longe. As políticas de produção de cultura, em geral, e de cinema, em particular, no Brasil são obtusas, ultrapassadas e inviabilizam a solidificação de uma indústria forte do cinema brasileiro. Há exceções. José Padilha lançou o segundo Tropa de elite de maneira independente, mas, de novo, ele tinha um material em que era seguro apostar. O cinema independente, aquele desprovido do objetivo de fazer dinheiro, encontra restrições no mundo todo; é injusto responsabilizar a Globo Filmes por sua incipiência no Brasil. A diferença é que outros países investem em prol da solidificação de uma indústria cinematográfica que no Brasil continua refém ou de políticas canhestras ou de um único conglomerado de comunicação. Não dá para ter cinema independente sem ter indústria.

8 comentários:

  1. Acho que as duas partes tem razão. Afinal, é bem verdade que a Globo Filmes não busca idealizar um conceito bacana de "fazer cinema" (aliás, nem conseguem chegar em um patamar hollywoodiano, sempre esbarrando no jeitão "novelesco" que parece piorar com o tempo!), mas é aquela coisa: tem o seu público. E quanto à isso acaba ficando um pouco difícil argumentar mesmo.

    Acho que eles poderiam criar um "segmento" dentro da própria Globo Filmes para dar oportunidade para filmes mais... "independentes", mas por outra lado: tem público e financiamento pra todo mundo, rs

    No fim, acaba sendo até mesmo uma discussão um tanto quanto vaga.

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  2. O problema que acho maior são esses financiamentos do governo para que os diretores possam fazer seus trabalhos e, depois, cair nessa malha de distribuição multinacional. Não acho que dar dinheiro para a produção seja a única alternativa. Vejo segmentos inteiros de profissionais que dependem exclusivamente de dinheiro público de editais para fazer sua próxima obra. O retorno sobre as bilheterias, ou não são usados ou são pífios para uma próxima obra. Duas ideias me vem à mente quando penso nesse funil: criar espaços alternativos para exibição de filmes e cobrar um retorno dos diretores e produtores sobre o dinheiro investido. Dessa forma, os espectadores não ficam reféns de uma mercadologia exterior e os diretores tendem a fazer um filme que, sem mutilar a sua arte, atraiam mais público. Por que não editais para criação de salas de exibição em cidades do interior?

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  3. Acho uma pena, como você apontou, que a discussão tenha caído em um vazio e fique por aí. Adorei a resposta de Kleber, confesso, mas é triste ver que enquanto cada um procura defender o seu lado, quem perde é o cinema brasileiro. Porque a verdade é que não temos um cinema forte, industrial ou não. Temos ainda, cineastas lutando para fazer filmes com apoio do governo e comemorando bilheterias consideradas irrisórias para grandes produções de Hollywood.

    Na verdade, acho que a Globo Filmes traz problemas para o cinema nacional, quando não interessa a ela ajuda a formar uma indústria cinematográfica forte, tal qual vemos nos Estados Unidos. Quando sua estrutura entra para apoiar filmes que são facilmente esquecidos como disse Kleber, e que apesar de serem grandes bilheterias são financiados por editais e incentivos governamentais. Se não lucro há tanto tempo, porque precisam de incentivo? Toda indústria é feita de filmes pipoca, experimentais, pensantes, culturalmente marcantes, etc.... E tem público para tudo.

    Não muito distante tivemos isso em nosso país com as tentativas de industrialização da Atlântida e Vera Cruz, com filmes que davam público e tinha qualidade. Assim como movimentos como o Cinema Novo que teve todo tipo de experimentação e público também.

    O que não dá é ficar repetindo a mesma fórmula de comédias bobas que dão bilheteria ou filmes independentes que não tem público. E o governo, ou seja nós, pagando a conta de tudo.

    bjs

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  4. Esse é o claro exemplo de discussão que acaba esbarrando em um conceito inicial: Qual a função do cinema? Porque fazer cinema? Obviamente, a Globo e o Kleber pensam de forma diferente.
    E me pergunto, porque fazer cinema se ninguém vai ver? É um grande erro de muitos produtores independentes esse de virar as costas e simplesmente não pensar no público.
    Não estou defendendo a Globo Filmes. Claro que acho que como empresa, deveria pensar no desenvolvimento do seu consumidor. É bom para a empresa. É bom para o cinema. É bom para o Brasil. Mas é questão de custo/benefício. No caso do Kleber, ele conseguiu superar (de certa forma) essa barreira. Grande parte graças à boa receptividade da critica e dos festivais.
    Para o produtor independente, também é interessante pensar na circulação/exibição. Conheço muita gente que produz (aparentemente) apenas como exercício de egocentrismo e não é uma situação incomum e incrivelmente, não pensa na divulgação e comunicação do projeto. São vários gargalhos.
    Muitos dos editais também não exigem ou disponibilizam verba para a divulgação, mas ao governo também interessa superar esse gargalho entre produto/qualidade/público/exibição. É necessário criatividade e esforço para criar um produto que contemple esses quatro "ângulos".
    Acho que falta pensar no cinema como business e isso não exige que produtores abram mão da qualidade e identidade.

    Ufa!

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  5. Bem, Reinaldo, esse post foi um sucesso, hein? rsrs
    Falando sério, a indústria cultural no Brasil como vc bem citou ao lembrar da Universal é muito pobre em suas políticas de investimentos. Em Hollywood todos os grandes estúdios mantém parcerias ou possuem um selo voltado à produção independente justamente para não perder o bonde da história, sabem que o poder criativo muitas vezes encontra-se na mão de gente que ousa ao criar e reconhecem que essa ousadia dá prestígio e revitaliza o mercado como um todo.
    Enquanto no Brasil as pessoas continuarem a fazer investimentos querendo que todo resultado seja pra ontem, não podemos esperar uma grande indústria como se vê sendo construída em outros pontos do globo, como a Ìndia (só pra não repetir o padrão Hollywood de novo).

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  6. Alan: O triste deste episódio Alan é justamente seu caráter alcoviteiro. Ou seja, atende apenas interesses circunstanciais.
    Abs

    Ari Cabral:Essa alternativa de editais para criação de salas de exibição foi algo já aventado por algumas pessoas, mas a ideia não foi para frente. Como patenteamos no texto e no espaço de comentários, falta vontade política para o ensejo de um debate mais profundo e objetivo acerca do tema.O financiamento nos termos vigentes, ao meu ver, é um entrave ao desenvolvimento do cinema como um todo.
    Abs

    Amanda: A Globo Filmes com sua postura pode não fazer maravilhas pelo cinema nacional, mas sinceramente não vejo como pode estar prejudicando-o. Seria muito ufanismo exigir que uma empresa, seja ela qual for, não se beneficie de uma estrutura arcaica e ultrapassada como essa que temos para incentivar o cinema nacional. A Globo Filmes participar de editais, portanto, faz parte do jogo (cujas regras precisam ser urgentemente revistas) e não um deslize ético como faz crer a fala de Kleber. Enfim, concordamos que o triste é ver um debate tão importante para nosso cinema a serviço de uma agenda promocional. De ambas as partes.
    Bjs

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  7. Patrícia:Primeiro, agradeço pelo comentário de fôlego e incrível eloquência. Acho que vc discorreu bem sobre a pandemia da qual falamos. são vários gargalos. Desde a falta de vontade política à percepção de cinema (e políticas culturais) distorcida que muitos do meio do cinema ostentam. Falta aos profissionais de cinema do país essa noção que vc aventa a importância: pensar o cinema como business sem deixar de pensá-lo também como arte.
    Há, lógico, as exceções. Os consagrados Heitor Dhalia, Fernando Meirelles e Walter Salles. Ironicamente, pode vir de Pernambuco, de Dhalia e Kleber, a resolução dessa equação.
    Bjs

    Aline: Eu estava precisando de um sucesso aqui. rsrs. Em suma, a gente não tá sabendo nem copiar, né? rsrs
    Bjs

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  8. Infelizmente, a Globo Filmes é importantíssima para tornar o cinema brasileiro possível e acessível aos brasileiros. Só que isso gera uma situação problemática. Todos os filmes de grande circulação do país são da GF, portanto, não é de se espantar a grande quantidade de atores globais em seus "casts". Quase sempre fazem filmes para simples diversão, para um publico que não é apto a acompanhar um cinema moderno e inovador, deixando de lado enredos inteligentes e grandiosos. Produzir um filme com o mínimo de qualidade não deve ser nada barato, então prejudicasse o filme em detrimento dos patrocínios...e por aí vai !

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